Ana Luiza 09/07/2014
Bela e brutalmente honesto
Susanna Keysen não tinha um plano e, para alguns, não tinha um futuro. Susanna não queria ir para a faculdade e não conseguia manter-se em um emprego. Susanna tinha um caso com seu professor de inglês. Susanna espremeu uma espinha e tomou cinquenta aspirinas de uma só vez. Susanna ficou confinada em um hospital psiquiátrico durante dois anos. Susanna é louca? Doente? Uma mistura dos dois ou só uma garota que não sabia o que queria? Uma garota que não atendia nem mesmo suportava os padrões impostos pela sociedade?
“Seria a insanidade uma simples questão de parar de fingir?” Pág. 52
Quem é Susanna Keysen e o que ela pode dizer, a partir da sua experiência em um hospital psiquiátrico e de convívio diário com seu transtorno de personalidade, sobre a vida, sobre sanidade e insanidade e muito mais? O livro “Garota, Interrompida” é a resposta para essa pergunta. A obra autobiográfica, curta e intensa é uma viagem à vida e a cabeça de Susanna, mas também ao universo de garotas que, como ela, tiveram, quando muito jovens, suas vidas “interrompidas”, nem que por um breve instante, por causa do comportamento ou personalidade que tinham, algo que ia muito além de seu controle, mas que eram fatores na hora de defini-las como loucas ou não, como doentes ou não – e olha que nem sempre sanidade ou doença eram tratados como coisas diferentes.
Apesar de ser uma leitura rápida por causa da pequena extensão, “Garota, Interrompida”, com sua honestidade brutal e conteúdo denso, foi um livro que me fez sentir vulnerável. Essa é uma história de tanta intensidade e sensibilidade que o leitor fica emocionado e impressionado por a autora ter divido memórias tão particulares e profundas com o mundo. É impossível deixar se identificar com a personagem-autora. Susanna não deixa de frisar que, apesar dos problemas e até mesmo doenças que ela e as outras garotas do hospital tinham, todas eram garotas, pessoas como quaisquer outras. O que faz o leitor se perguntar: e se fosse eu? Será que podia ser eu? Todos nós temos essa impressão de que loucura e doença só afetam aqueles distantes de nós, um parente de um conhecido, um estranho com o qual esbarramos na rua, mas nunca aqueles que estão ao nosso lado, nunca com nós mesmos. Mas a realidade não é assim. Poderia não ser Susanna ou Polly ou Lisa ou Daisy ou Georgina naquele hospital. Poderia ser sua avó, sua mãe, sua prima, sua irmã. Poderia ser você. “Garota, Interrompida” traz muitos questionamentos, mas, para mim, os mais importantes foram justamente esses. O que impede alguém de estar aqui hoje e amanhã em um hospital psiquiátrico? O que impede uma pessoa aparentemente normal e saudável de ser louca e doente? O que é loucura e doença? Há diferença entre as duas?
“Se eu, que antes era repulsiva, agora estou assim tão longe da minha loucura, quão longe não estarão vocês, que nunca foram repulsivos, e que profundezas não terá alcançado a sua repulsa?” Pág. 144
“Garota, Interrompida” é narrado em primeira pessoa por Susanna, que com sua escrita objetiva e provocativa atinge e conquista o leitor logo nas primeiras palavras. O livro é dividido em capítulos muito curtos, que passam a impressão de que a obra foi sendo escrita conforme a autora se lembrava daqueles fatos. Também foram acrescentados entre os capítulos diversos documentos relativos a passagem de Keysen pelo hospital psiquiátrico, como o Guia de internação preenchido quando ela foi internada, uma forma acrescentar ainda mais realidade e impacto a história.
Mas se “Garota, Interrompida” é real, temos de lembrar também que é tendencioso. É Susanna quem conta toda a história, portanto, ela está limitada a visão que a autora teve dos fatos. Uma das provas disso é a consulta que ela teve com o médico que a encaminhou para o hospital. Para Susanna, a consulta não durou mais de meia hora, mas o médico afirma que ele conversou com ela durante três horas. Assim, cabe ao leitor decidir se vai acreditar em tudo ou não, o que deixa o livro ainda mais delicioso. O livro não é contatado sobre uma ordem cronológica específica, o que nos desafia ainda mais na tarefa que é desvendar Susanna através de seu livro. No início, a impressão que a autora passa é de que ela foi internada por causa de nada, que ela era completamente normal e que havia conspiração no mundo que determinou que ela era louca. Mas conforme o desenrolar dos capítulos vemos que não é bem assim. Susanna tinha um problema, uma doença. Mas isso necessariamente define sua insanidade? Só lendo para saber.
“Minha internação foi voluntária. Tinha de ser, pois eu era maior de idade. Era isso ou um mandado judicial – se bem que, no meu caso, nunca teriam conseguido um mandado judicial (...). Eu não era uma ameaça para a sociedade. Seria uma ameaça para mim mesma?” Pág. 49
Se Susanna já é um mistério a parte, os personagens secundários também o são. Como os fatos, eles são construídos pela visão de Susanna, o que praticamente desafia o leitor a desvendá-los por si só, a vê-los além da visão que nos é proporcionada pela autora. As garotas com quem Susanna convive no hospital são as minhas favoritas. Cada uma delas tem um diagnóstico e uma personalidade diferente, é impossível não simpatizar com suas histórias igualmente tristes e tocantes como a da autora. Lisa é a que mais desperta curiosidade, talvez por nem mesmo a autora ter conseguido desvendá-la por completo. E toda vez que a Lisa aparecia não pude deixar de lembrar do filme feito a partir do livro e da bela atuação de Angelina Jolie.
“Cynthia era depressiva; Polly e Georgina eram esquizofrênicas, eu tinha transtorno de personalidade. Quando recebi meu diagnóstico, ele não me pareceu grave, mas, com o tempo, acabou soando mais agourento que o das outras. Passei a achar que minha personalidade era como um prato ou uma camisa com defeito de fabricação e, consequentemente, inútil.” Pág. 72
Enquanto Jolie transmitiu a essência Lisa de forma fiel, o mesmo não se pode falar sobre outros aspectos do filme Garota, Interrompida. Apesar das atrizes escolhidas, principalmente a que fez Susanna, serem idênticas as personagens na minha imaginação e terem conseguido fazer um belíssimo trabalho no longa, ele é diferente do livro e um pouco inferior. O filme tem muitos acontecimentos que não estão no livro e que não acrescentam nada a história a não ser um pouco mais de ação e movimento, mas o que mais se perdeu na adaptação foi a sensação causada pela falta de cronologia. No filme, a história é contada de forma cronológica, o que a deixa um pouco sem brilho. Outro detalhe que me incomoda no filme é que Susanna foi retratada de tal forma que não fica claro que ela realmente tem uma doença, o que não acontece no livro. Entretanto, o filme é bom e vale a pena ser assistido, mas apenas depois da leitura do livro.
Sobre a edição, também tenho só coisas boas a dizer. A tradução e diagramação estavam perfeitas, o tipo e tamanho da fonte também. Como sempre, eu adoro livros com páginas amareladas, mas as de “Garota, Interrompida” conquistaram ainda mais por serem feitas de um papel mais grosso, resiste. Eu absolutamente amo essa capa. O tom de rosa bem forte é lindo e combina com a história, e um detalhe que amo são as palavras escritas no fundo quase que invisíveis.
Honesto, intenso, questionador e emocionante, “Garota, Interrompida” foi uma leitura incrível e inesquecível, que entrou para os favoritos. Recomendo o livro para quem gosta de histórias densas, mas rápidas de ler e impossíveis de esquecer. A obra também é muito interessante para quem gosta de temas como insanidade e doenças mentais. Quem, como eu, tem certo apreço pela área da psiquiatria, encontra aqui um prato cheio – e delicioso!
“As cicatrizes não têm personalidade. Não são como a pele da gente: não mostram a idade ou alguma doença, a palidez ou o bronzeado. Não têm poros, pelos ou rugas. São uma espécie de fronha, que protege e esconde o que houver por baixo. Por isso as criamos. Porque temos algo a esconder.” Pág. 21/22
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