Sekh 07/08/2014
Canudos como você nunca imaginaria...
"“Escatologia” é uma palavra que estamos mais acostumados a ver escrita do que a ouvir. Significa, literalmente, o estudo das últimas coisas, ou, de forma mais elaborada, é o ramo da teologia e da filosofia que se debruça sobre o destino final da raça humana. Na tradição cristã, que herdou sua direção escatológica do judaísmo, as últimas coisas são morte, julgamento, paraíso e inferno.
E o que isso tem a ver com “Guerra do fim do mundo”? É, esta é uma excelente pergunta.
“Guerra...”, novela escrita por Mario Vargas Llosa, é tão poderosa quanto assombrosa. Baseada nos já deveras conhecidos eventos de Canudos, é extremamente bem-sucedida em examinar os significados e impactos que Conselheiro e seu povo tiveram no Brasil do séc. XIX. A ficção de Llosa é distinguida por sua inteligência, seu gosto pela ironia e sua disposição em se engajar nas complexidades existenciais com uma percepção que desdenha do rigor ideológico.
Vargas Llosa é peruano, mas “Guerra…” se passa no sertão baiano, no ano de 1897. O advento do século XX se aproxima e traz consigo grandes mudanças para o Brasil, que borbulha com as promessas de um futuro sem limitações e, ao mesmo tempo, sofre o peso de seu passado – que ainda é bastante presente: sacerdócio retrógrado, colonialismo primitivo, escravidão. A liberdade individual per si é uma novíssima experiência para milhões de negros, uma vez que passaram-se apenas 10 anos desde a abolição da escravatura. A república, ainda cambaleante, encara o futuro sobre o lema de “Ordem e Progresso”.
Em meio ao final de um século conturbado, uma figura misteriosa, barbada e vestida numa túnica roxa, aparece no sertão. Ele fala de amor, paz e penitência. Ele fala de morte e julgamento, céu e inferno. O nome do estranho é Antônio e ele é conhecido por seus seguidores como Conselheiro; isto é tudo o que os leitores saberão sobre sua origem ou identidade. Numa primeira análise, sua doutrina parece reacionária e ultra-ortodoxa, mais católica que o Papa, ou, ao menos, mais conservadora.
À medida em que os pobres mais pobres – marginais, doentes e deformados, bandidos, assassinos, rebeldes, fugitivos – juntam-se à horda sempre crescente dos seguidores arrebatados pela intensidade espiritual de Conselheiro, ele prega sua mensagem de salvação milenar. A república, diz ele aos cangaceiros, não é um veículo de libertação, mas uma abominação nascida da união entre Maçonaria e Protestantismo; suas inovações – casamento civil, separação entre igreja e estado, o sistema métrico – não são medidas de progresso, mas ferramentas satânicas do anticristo; o senso nacional proposto, com suas questões pertinentes à religião e raça, não é uma tentativa de conhecimento avançado da nação, mas um mecanismo diabólico que caçará os negros do Brasil, e os escravizará novamente.
Numa história que se passa à aurora de um novo século, “Guerra...” parece olhar para frente e para trás; as forças nele representadas são eternas e elementais. Não é uma competição de múltiplas ideologias que aflige o mundo, diz Llosa; é apenas uma, sempre a mesma, denominando-se de diferentes maneiras; é o herói mostrando mil faces, assombrando eternamente a paz de presidentes, generais e ministros, ameaçando seus benefícios, salários, palácios e tronos em nome da liberdade, igualdade e de uma vida mais abundante. Esposando o governo do Messias, o Cristo, as pessoas perseguem um ideal imutável – a liberação da humanidade das garras do mal, o sofrimento – praga antiga – finalmente aplacado; mil e uma revoluções em nome daquela resolução.
Das muitas personagens apresentadas neste livro maravilhoso e memorável, uma das mais fortes, pois serve para reforçar o argumento da novela, é o escocês Galileo Gall. Enquanto os liberais exigem a destruição de Conselheiro, Gall aproxima-se do principal jornal de Salvador com um anúncio clamando por uma “demonstração pública de solidariedade cm os ideais de Canudos”. O escocês é um anarcosocialista, revolucionário veterano que lutou nas comunas de Paris em 1870. Tal qual as autoridades da igreja, Gall é rápido para detector aquilo que os auto-entitulados jacobinos do Rio e Salvador não conseguiram: a doutrina revolucionária nos ensinamentos de Conselheiro.
Tropas e mais tropas são arremessadas contra os jagunços de Canudos. Todas encontram desastre. O país inteiro entra em pânico e o governo no Rio entra em uma crise que ameaça derrubá-lo. Dentro dessa tensa textura, um fio de personagens rica e vivamente trabalhadas são pegas no meio do turbilhão que se move como as formigas carnívoras sertanejas. Na guerra no fim do mundo luta-se sem pausas. Vidas, amores e ambições são descartados.
O trabalho de Llosa é de tal amplitude, seu manejo das grandes questões tão confiante e intelectualmente excitante, que há um certo receio em criticá-lo. O livro é longo. E poderia ser um pouco mais curto. Esta é uma característica comumente encontrada em livros tão ambiciosos como “Guerra...”. Um dos pontos negativos é a escolha de Mário em relação às cenas curtas e anticlimáticas, vacilantes após finais explosivos.
É difícil ler um livro como este, tratando como o faz de um sistema mítico no qual nossas crenças e nossas histórias são misturadas, sem serem forçadas a um reexame dos princípios que nos serviram de guia em seus labirintos.
É inevitável traçar uma comparação com outra obra – clássico brasileiro de indispensável leitura – que também trata do conflito de Canudos: Os Sertões, de Euclides da Cunha. Embora possuam o mesmo conflito como inspiração, são livros bastante diferentes. Euclides caracterizou de forma ímpar o sertanejo, personagem intrínseca ao Brasil.. Llosa, por sua vez, optou por uma retratação mais abstrata, focando nos conflitos e seus impactos emocionais e espirituais.
Llosa tem a ousadia de questionar a singularidade do mito revolucionário. Implicitamente, atribuindo à revolução seu lugar entre os dramas rituais da história, ele questiona sua função salvadora. Assim, ele assume a postura cético liberal, que não deve ser confundida com pessimismo. Esta, como a do revolucionário, é uma perspectiva histórica e tradicional. Longe de ser uma postura de desespero, é uma história de fé e esperança, mais esperança do que muitos de nós somos capazes de realizar. Há uma máxima que declara “a capacidade do homem de suportar é proporcional à sua visão histórica”. Numa época em que, como os viajantes polares, passamos por terreno perigoso, ameaçados por um sono que não só contém monstros, mas o abismo, a clareza de visão e fé na razão implícita na convocação maravilhoso de Mario Vargas Llosa pode representar a esperança de um despertar mais segura de um despertar.
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