Krishna.Nunes 22/08/2024Neste livro, Valter Hugo Mãe consegue chocar o leitor com a beleza, o horror e a dor de um romance simbólico e denso.
Quarto romance do autor, "A desumanização" traz Haldora, ainda criança, tentando lidar com a morte de sua irmã gêmea, Sigridur.
As circunstâncias obrigam a narradora, com apenas 11 anos, a amadurecer prematuramente à medida se vê em meio a acontecimentos terríveis. Tendo perdido parte de si mesma com a partida precoce da irmã, Halla começa sentir-se apagada, enquanto a família e os moradores da vila passam a enxergá-la como meio morta.
As paisagens áridas da Islândia servem de pano de fundo perfeito para atmosfera do texto. Os vulcões, as nevascas e os fiordes são, de certa maneira, um espelhamento dos sofrimentos dos personagens. As montanhas servem como metáfora para a grandeza de suas dores; o gelo para a frieza das relações; e os altos abismos para a resistência humana diante de situações hediondas. O isolamento da ilha, a inclemência do mar que alimenta ao mesmo tempo que a tudo devora, a severidade do clima isolam os personagens em si mesmos, obrigando-os a encarar seus próprios fantasmas.
"Talvez a morte seja só uma maneira de simplificar a alma. A morte é a simplificação das almas. Deixa-as libertas dos infinitos pormenores do corpo. Libertas da sua vulnerabilidade", imagina a garota. E conclui: "O corpo suja a alma."
Os corpos são receptáculo da imundície. A vastidão e a solidão tornam a linguagem obsoleta, pois ela não daria conta de expressar as dores absurdas que consomem os personagens. Daí a comunicação passa a ser predominantemente não verbal e carregada de simbolismo. Em meio a raros gestos de gentileza intermeados por atos de violência, Halla é obrigada a enfrentar um relacionamento familiar insensato que a levará a compreender melhor a si própria, o sofrimento e o luto, apesar de nunca chegar a compreender seus pais. A mãe projeta toda a sua revolta pela perda da outra filha através da desumanização da filha sobrevivente. Agride-a e tenta impedi-la de viver plenamente, como se ela fosse um espírito pela metade. O pai se isola no mar, a mãe se automutila. Na filha, crescem a isolamento e o ódio.
"Talvez a tristeza fosse um modo de envelhecer. A tristeza colocara os meus pais e as coisas todas a envelhecer."
Um dos aspectos em que a linguagem ganha grande importância no romance é no relacionamento da menina com seu pai. Para consolar Halla, o pai lhe escreve poemas. Nesses versos, que são um dos poucos fragmentos de comunicação em que prevalece a Palavra, ele tenta exprimir os próprios sentimentos. Diante do encantamento dos poemas, a narradora até se deixa iludir com a possibilidade de sonhar: "Devia ser a poesia do meu pai que me mimava. Os livros. Eram os livros. Diziam-me coisas bonitas e eu sentia que a beleza passava a ser um direito."
Os livros e a música entram, então, como elementos tanto reveladores como redentores, buscando expor a contraposição entre o sublime e a loucura, das potencialidades humanas com a ruína dos espíritos em crise. A própria linguagem do livro é belíssima, ao mesmo tempo em que narra acontecimentos horríveis.