willian.coelho. 07/09/2022
Um pouco inconsistente, mas bastante reflexivo
"Do androids dream of electric sheep" (1968) é o livro de ficção científica, escrito pelo escritor estadunidense Philip K. Dick, que deu origem ao famoso longa "Blade Runner" (1982), dirigido por Ridley Scott. Embora tivesse algum reconhecimento dentro do seu campo de escrita (venceu o prêmio Hugo em 1962), é muito provável que jamais alcançaria tamanha visibilidade se não fosse pela adaptação: sua obra chega aos tempos atuais não somente pela forma direta, mas também por diversos filmes e séries. Ainda assim, na ocasião do lançamento de "Blade Runner", PKD, sendo ostensivamente pressionado pelos produtores (e pelo farto cachê) a produzir um texto "mais comercial" que enquadrasse o roteiro, recusou-se (no fim, uma decisão acertada, pois faleceu antes da estreia). Deveras prolífico (e aparentemente um tanto insano), deixou dezenas de trabalhos; oscilou entre ficção, especulação e religião.
A trama, dividida em dois eixos, acompanha o caçador de androides R. Deckard - atrás de seis modelos Nexus-6 (bastante humanizados) - e o cognitivamente afetado e socialmente rejeitado J. Isidore - apaixonando-se por uma das presas do primeiro protagonista. Diferente do que é comumente encontrado neste gênero literário, a história não se contém em detalhamento atmosférico excessivo: há certa competência em criar conceitos e termos futuristas de modo imaginativo, todavia é priorizado o esforço em manter o frenético ritmo narrativo (muita ação e plot twists). É uma distopia em que a Terra, tomada por poeira radioativa resultante de uma grande guerra, ficou quase inabitada e cheia de lixo (os humanos migraram para outros planetas). A religião vigente - que os templos foram substituídos por uma experiência VR - se baseia na empatia; os bens mais preciosos são animais de verdade (pois houve extinção massiva); o humor é controlado por um sintonizador, bem como as mais variadas emoções.
O ponto mais frágil da obra é, de modo geral, a sua inconstância: a linguagem, quase sempre simplória (pouco polida, sem requinte) envereda, de repente, para algo mais poético, sinestésico e, abruptamente, retorna ao padrão dominante; o tom, que, às vezes, tende à abstração, sempre regressa para o real, porém, no segmento final, ganha um caráter alucinatório ligado a passagens teológicas; algumas personagens, em dados momentos, parecem não se comportar de acordo com a sua personalidade, e é criado todo um clímax (pela cadência do enredo), entretanto que culmina em desfechos anêmicos. Não que haja qualquer problema em relação à mediocridade dos acontecimentos (a vida real costuma pender à trivialidade e isso confere uma conveniente verossimilhança ao texto); fica evidente, contudo, pelo teor da trama, que não é intencional, leva o leitor a questionar a qualidade técnica de PKD como escritor.
No entanto, é válido destacar, conquanto não haja presumivelmente clara pretensão por parte de Philip, a virtude dos elementos ambientais e de certas passagens em elencar questões filosóficas. Ademais, pouco importa o intento do autor; é o efeito causado pelo seu escrito que deve preponderar. O tópico central, sem dúvidas, é a indagação “o que é estar vivo?” e, com ele, segue toda a sorte de assuntos relacionados, como: descriminação e a voraz busca dos conjuntos em encontrar meios de subjugar outros com base nas diferenças; aptidão de a vida criar outra existência, inclusive capaz de a superar, de a substituir e até mesmo de a extinguir; relevância das memórias no contexto da identidade do ser (o que faz refletir sobre a situação de indivíduos que adquirem doenças demenciais); sustentação física - já que tudo (e apenas) o que está fundamentalmente provado é material - para que inteligências artificiais sejam habilitadas a sentir qualquer sensação humana. Também há uma intrigante marca, indubitavelmente atual, na atmosfera da vida cotidiana daquelas personagens: a sede que a civilização capitalista moderna manifesta em introjetar práticas antinaturais (artificiais) nos seus hábitos. Estão todos conectados e ligados nas rotinas uns dos outros, mas ninguém se encontra (nem a si mesmo na própria solidão); contemplam belíssimas paisagens (ao menos o que se convenciona achar deleitoso) pela lente de um telefone, e ignoram que, em um piscar de olhos, estarão todos mortos e esquecidos; automatizam todo o trabalho possível, e caem em desuso (não são mais suficientes para agradarem-se, nem sequer na sua banal fisiologia [a pornografia é superior, o simples alimento tem gosto de jornal, o carro do vizinho é o ideal]). Ou seja, parece que todo esse esforço somente diluiu o homem como animal a tal ponto que lhe restou um vazio tão enorme que só pode ser preenchido pelos seus próprios inventos (que têm um custo necessário para se retroalimentarem). Os robôs humanoides de PKD trazem isso à superfície, pois só o que almejam é a humanidade que o homem descartou; paradoxalmente, contudo, são limitados à escravidão por sua falta de empatia. Bastantes mais raciocínios podem ser extraídos, como o embate mídia versus religião na alienação, que se constrói com profundidade narrativa.
Certamente, muitos resolvem ler o livro após assistirem ao filme de 82 (não é à toa que a editora Aleph traz o nome “Blade Runner” em sua capa), porém eles divergem substancialmente em algumas partes (e em outras é idêntico). O longa foca ainda mais na ação, removendo personagens essenciais (e que geram os melhores momentos do romance) para o conflito de ideias que ocorre com Deckard; em vez disso, a estratégia abordada foi introduzir um namoro mesquinho de final feliz. Ainda assim, é um bom filme (desde que não se busque nele todo o pessimismo reflexivo do texto), cabendo salientar a ótima filmografia de estética oitentista: é um noir chuvoso e esfumaçado embalado por um instrumental regado à órgão e saxofone. Para finalizar, é importante realçar as críticas positivas de leitores para com a “linguagem fluida” e a “escrita fácil”, o que enfatiza como que as pessoas estão despreparadas para gozar as nuances da forma e do idioma (o tradutor tenta, mesmo fracassando, elaborar uma adequação equivalente, mas os sujeitos reclamam que não conseguem ler, que trabalho mais infrutífero). A simplificação da arte - que hoje parece um requisito de qualidade - degenerou a forma com que os indivíduos se harmonizam com ela e, por conseguinte, provocou um embrutecimento cultural. Não é que a estética mais crua e sem pompa seja problemática, mas que isso não deveria ser, de jeito nenhum, um padrão de excelência!