Matheus Sousa 06/06/2022
Sobre o fedor moral
Dostoiévski fala ao nosso ouvido. Confessa lamúrias. Se diz inconformado: ?não entendem o que escrevo, me tomam como louco?, diz. Mas o que vemos em ?Bobók? não é Dostoiévski amuado, convalescente, mas um autor energizado pelas críticas, quase feroz, disposto a guerrear, mesmo que isso o leve a sofrer uma hemorragia narrativa que pode lhe custas a vida e o prestígio pós morte. O ?fedor moral? que exalam os mortos, semivivos, tem origem nos insultos feitos a ?Os Demônios?, obra anterior do autor. O ?fedor moral? alcança toda a sociedade russa, cujo progresso social deriva dos movimentos da inércia, falseada pelo progresso. Atônito, Dostoiévski prefigura como um ouvinte que, assim como o narrador de ?Bobók?, pegou no sono em cima de uma sepultura e passou a entender a língua dos mortos, os sons que escapam dos recém sepultados. Não se prolonga muito explicando as origens do fenômeno, não há porquê: logo virá o naturalista, o filósofo, e tudo estará em ordem, ele diz.No mundo, na arte especialmente, na criação das narrativas, não há espaço privilegiado para a ordem (e muito menos para a desordem), apenas há espaço, espaço sem conteúdo, que se deve preencher com confissões fruto da mais íntima e redundante subjetividade. Na morte e na vida, abraça-se a devassidão e, em um sentido amoral, o beijo da morte é sensual pois equaliza e desnuda o espírito humano, o impele a ser honesto, a se desviar das mentiras, especialmente aquelas mentiras que definem as hierarquias, que segregam o homem, que é um só, em sua imundície, como diria um certo poeta. No fim, o silêncio daquilo que não se ouve. Levanta-se da sepultura, mas não caminha para o descanso; como todos: restam os lampejos da consciência que nunca tivemos de que estamos vivos. ?Bobók? é um conto excepcional, uma sátira aos costumes de uma sociedade abduzida e orientado por um senso moral que apenas camufla humilhantes instintos animalescos, instintos que impedem até que os mortos possam dar descanso aos vivos. A edição conta ainda com dois ensaios que se detém em uma análise minuciosa do conto, das motivações do Dostoiévski e de seu impacto na Rússia.