Renata CCS 07/07/2016Um livro que fez minha cabeça..
“Ah, mas a fé nem vê a desordem ao redor...” (Guimarães Rosa)
De uma originalidade apaixonante e deliciosa! Este é um termo perfeito para definir o livro A CABEÇA DO SANTO, a estreia para o público adulto da escritora Socorro Acioli, já consagrada em escrever para crianças e vencedora do Jaboti de 2013.
O livro narra a trajetória de Samuel, que sai de Juazeiro do Norte com destino ao vilarejo de Candeia em busca do pai que nunca conheceu, em cumprimento do último pedido feito por sua mãe antes de falecer. Samuel faz todo o trajeto de 16 quilômetros a pé, sofrendo com as intempéries do sertão nordestino.
Ao chegar em Candeia, encontra uma cidade quase morta, cheia de desesperança, abandonada por grande parte da população devido à crendices de mau agouro instauradas pelo povo, por causa de uma estátua de Santo Antônio sem cabeça, inacabada por motivos técnicos. E como não há nada de ruim que não posa piorar, nada ocorreu como Samuel esperava: não conseguiu encontrar seu pai e sua avó, também residente daquela cidade, não lhe recebeu bem, apesar de se deparar com o neto consumido pela viagem. Além disso, uma tremenda chuva despenca do céu e ele é atacado por um bando de cães selvagens. Ferido, cansado e com fome, encontra abrigo em uma gruta que, somente no dia seguinte, descobre ser a cabeça da estátua descomunal do Santo Antônio.
A partir daí já saberemos que não se trata apenas de uma história de um filho à procura de seu pai: a cabeça do santo ecoa vozes de mulheres, com suas preces de ajuda ao santo casamenteiro. Sim! Samuel descobriu ser portador desse talento insólito e misterioso, só não sabia se era por algum lapso do santo ou se era alguma artimanha do capeta, mas o fato é que esse dom inesperado mudou a sua vida e de todos na cidade. Candeia ressuscita: ganha peregrinos vindos de todas as partes, pois o protagonista e seu novo amigo, Francisco – que dá o maior tom de humor ao enredo – decidem comercializar o dom de Samuel. A cidade ressurge no mapa, e por causa dos “milagres” do Santo Antônio, ironicamente o mesmo santo que a havia arruinado.
A narrativa de Socorro Acioli é de uma leveza encantadora, de uma engenhosidade elegante e muito competente. O modo como ela utiliza os costumes e crenças de uma região para nos presentear com uma história com um toque de fantasia, e sem perder o tom nordestino, prova que Acioli é uma escritora primorosa e que tem muito a contribuir para a literatura nacional.
Os personagens são notavelmente bem construídos, o enredo é muito envolvendo, a narrativa é leve, engraçada e, por vezes, poética. Há mistério, humor, drama, aventura e romance. Tem tudo que um bom livro tem que ter. Acioli nos prende a cada capítulo, nos deixando a cada página mais curiosos e fascinados com o linguajar, o palavreado, o cenário... tudo tem um porquê, uma imagem, um sentido, uma graciosidade singular.
Você até vai tentar economizar o livro, ler mais devagar para melhor desfrutar a companhia de Samuel e Francisco, mas a história é tão contagiante que dificilmente você vai conseguir desacelerar a leitura.
A CABEÇA DO SANTO é um livro tão gostoso de ler, tão cheio de imagens da cultura popular brasileira, com humor e leveza que envolvem o leitor a cada página, que é certo o seu poder de cativar um público bem diverso. Teria tudo para ser apenas uma história bem contada, mas tem a alma e a sinceridade que só uma filha do nordeste poderia colocar em uma obra.
Terminei a leitura com vontade de recomeçar. Entrou direto para a minha lista de prediletos e não sairá mais de lá.
Fiquei muito feliz em ler uma representante da nova geração de escritores nos presenteando com uma literatura primorosa, que foi buscar em suas raízes. Socorro Acioli me carregou para dentro da cabeça do santo e me fez ouvir também: literatura brasileiríssima, e de primeira qualidade!