spoiler visualizartbbrgs 23/07/2022
Memorial de Aires
O diplomata aposentado Aires é quem escreve este diário, narrando os fatos acontecidos na casa do Flamengo dos velhos Aguiar, um casal amigo que nunca teve filhos. Essa ambientação é centro de grande parte da ação do livro, visto que Aguiar e dona Carmo, sua esposa, estão sempre de portas abertas para visitas de seu círculo mais íntimo de amigos. Entre esses amigos estão Mana Rita, d. Cesária, a viúva Fidélia de Noronha, o desembargador Campos e Tristão.
Fidélia e Tristão são dois personagens que têm grande importância dentro da trama pois são considerados como filhos pelo casal Aguiar, que, como já dito, nunca teve filhos biológicos e por isso se ressente.
Desde o início do livro percebemos como o foco temático vai girar em torno da viuvez de Fidélia: logo quando Aires faz aquela desnecessária aposta com sua irmã, notamos que a principal questão que vai nortear a narrativa é se Fidélia irá ou não se casar novamente. Essa questão, do meu ponto de vista, foi aplacada assim que ela voltou a tocar piano, pois pude ver que a palavra dela era vã e que, se algum dia ela disse que nunca mais tocaria, foi falsamente; portanto, se algum dia ela disse que nunca mais se casaria, foi falsamente também. Quando Tristão, querido pelos Aguiar, retorna da Europa, tudo vai começando a ficar muito mais às claras sobre quem seria o escolhido, por fim.
Os acontecimentos narram fatos entre janeiro de 1888 a agosto de 1889. Esse posicionamento histórico do enredo escolhido pelo autor foi muito interessante, pois permitiu colocar, em paralelo à narrativa, fatos políticos de importância que o Brasil vivia à época. A abolição da escravatura se dá no meio da história e eu achei bastante surpreendente a forma com que Machado se utilizou dela no enredo: no meio da história, assim como a abolição, acontece também a morte de um dos personagens, que é o pai de Fidélia, barão de uma fazenda. Fidélia, por ser única herdeira, fica com a fazenda e decide vendê-la. Nesse meio tempo, os libertos (ex-escravos) que trabalhavam na fazenda começam a sair de lá, pois não havia mais trabalho para eles: com a possibilidade de venda da fazenda, eles ficariam sem ter onde viver e sem ter onde trabalhar, e por isso faria mais sentido mudarem-se. Fidélia, em vista desse fato, e por não ter conseguido finalizar nenhuma das negociações para a venda da fazenda, resolve, então, deixá-la aos cuidados dos próprios libertos.
Bom, esse é um mero ocorrido que toma poucas linhas do narrador do livro para explicar-lho. Mas fiquei intrigada por conta da sagacidade do autor em escolher um desfecho como esse para a fazenda: é um desfecho lúdico, não há como imaginar-lho acontecendo na vida real daquela época.
Além disso, devo também comentar sobre como, no início do livro, os fatos foram construídos e concatenados para dar estrutura ao enredo e, assim, fazer terminar uma narrativa que não poderia ter sido outra. Isso só poderia se dar pelo primor de Machado mesmo, que é um escritor de excelência. Cada personagem é extremamente bem pensado, especialmente o casal Aguiar. Gosto de como o autor buscou temas na velhice, na solidão, na tristeza e criou um desfecho que hoje em dia ainda repercurte: "Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos."
Por fim, há mais uma personagem que me captou a atenção e é pelo simples sarcasmo que ela representa, ou seja, toda uma sociedade burguesa fundada por prazeres fúteis. Machado personifica toda a sua descrença nessa sociedade na figura de d. Cesária, que não é assim tão grande na história, mas que ali está por algum motivo.