Dara 03/09/2020
O melhor mundo possível? Sério?
"Tudo não passa de ilusão e calamidade" - cap. 24.
A obra nietzschiana "Humano demasiado humano", publicada em abril de 1878, ano do centenário de Voltaire, traz uma homenagem na capa a tal filósofo, dedicando-a à memória do "grande liberador do espírito". Já aí pode-se vislumbrar a relevância de Voltaire na história da filosofia e do pensamento ocidental.
Desejei buscar este livro após a leitura do capítulo dedicado ao Voltaire no livro "Uma breve história da filosofia" de Nigel Warburton. Venho buscando me debruçar na história da filosofia ocidental e Voltaire é constantemente referenciado enquanto um dos mais relevantes pensadores iluministas da França do século XVIII, sendo a ele atribuída a libertária (e revolucionária) noção de que mesmo que não se concorde com uma perspectiva, o direito de que esta seja dita deve ser defendido até a morte.
Por receio de represálias por parte da igreja, a obra foi publicada sem constar a autoria do filósofo em 1759. A narrativa de "Cândido ou o Otimismo" conta, em um tom trágico e cômico, a história do personagem que nomeia o livro, serviçal que se apaixona pela bela Cunegunda, mas que logo de início é expulso de sua companhia. Toda trajetória do otimista Cândido se dá em torno de múltiplos infortúnios que enfrenta até reencontrá-la, muitas vezes conjuntamente ao filósofo Pangloss, o qual representa uma grande sátira ao encarnar a filosofia teísta de que o mundo é sempre o melhor que pode ser e que todo mal é o mínimo mal necessário para que todo contexto funcione bem, tendo em vista que Deus, senhor perfeito, estaria por traz de toda criação. Algo próximo ao que o pensador alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) concebia e que Voltaire muito discordava e satirizava.
Em 1755, conforme traz Nigel, ocorre em Lisboa um terremoto que matou mais de 20 mil pessoas. Esta tragédia afeta profundamente Voltaire e é reverberada na presente narrativa. Em "Cândido", após os personagens passarem por catástrofes inúmeras, mortes, tragédias, flagelos, Pangloss segue insistindo, bem como faz durante todo o escrito, que "os sofrimentos particulares produzem o bem geral" e que "tudo não poderia ser melhor". Já Cândido, o protagonista da trama, passa a pôr em questão suas certezas deixando-se afetar pelas árduas experiências que vai vivenciando. Ao final da trama traz que "devemos cultivar sempre nossos jardins", em uma perspectiva que convoca-nos a uma ação útil, concebendo que "o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade".
Outro aspecto interessante se refere às críticas contundentes feitas a respeito da ambição dos indivíduos e toda desumanização em jogo nas desigualdades da sociedade. Conforme escancara o trecho: "Quando trabalhamos nos engenhos de açúcar e a mó nos arranca um dedo, nos cortam a mão. Quando queremos fugir, nos cortam a perna. Eu incorri nos dois casos. Este é o preço do açúcar que os senhores comem na Europa".
Um grande incômodo que senti e não posso deixar de relatar se refere a certas falas racistas dos personagens. Venho pesquisando desde então qual era o posicionamento de Voltaire sobre este assunto, se se tratava de uma crítica ou não, mas não encontrei um consenso e sigo buscando novas fontes.
Por fim, trata-se de uma leitura rápida e cômica, apesar de muitas vezes pesada, e que certamente acrescentará a quem se interessa por filosofia e por textos que funcionam enquanto causa de reflexões.
"- Os tolos admiram tudo num autor de prestígio. Leio somente para mim. Amo apenas o que me serve.
Cândido, que fora educado a nunca julgar nada por si próprio, estava muito espantado com o que ouvia."