Rosa Santana 01/03/2012
O DESERTO DOS TÁRTAROS, Dino Buzzati, Nova Fronteira, 221 páginas.
Em “O Deserto dos Tártaros” o personagem seguido pelo narrador que lhe conta os sonhos, as esperanças e os desejos de glória, Giovanni Drogo, é designado a prestar serviço no forte Bastiani, limite do seu país, confrontando-se com o deserto a que chamavam ‘dos Tártaros’, porque Tártaros eram os que por ali chegaram, há muitos anos, para guerrear com seus compatriotas.
Drogo, então nomeado oficial, se acha em estado de quase alegria, em vista da nova vida que divisa: a despedida de um tempo ruim, de muitos e cansativos estudos, de punições superiores, de gelados dormitórios; dirá adeus a esses dias ruins que vivera! Aqueles meses e anos que lhe pareceram odiosos nunca mais se repetiriam. Agora, com a patente, teria dinheiro, belas mulheres... Mas, ao vestir o novo uniforme, onde a alegria que, como julgara, sentiria?
É no forte Bastiani que estarão, então, os motivos de contentamento e de preenchimento da parca existência. É lá que ele vai buscá-los! Mas, nova decepção o espera: o forte é um lugar desolado, triste, com paredes nuas e úmidas, com luz escassa, em que “todos lá dentro pareciam ter-se esquecido de que em algum lugar do mundo existiam flores, mulheres sorridentes, casas alegres, hospitaleiras.” (25) Um lugar distanciado de povoados, de moradores e com uma vida metódica, como o cantar de uma goteira, ininterrupta.
Mas, a par disso, há nos militares dali uma viva esperança: virão os tártaros para a guerra. Combatê-los lhes dará a oportunidade de realizarem os grandes feitos pela pátria e se cobrirem de glória, justificando assim seus dias tacanhos...
E é movido por essa esperança que Drogo vai se deixando permanecer no forte por mais de trinta anos. E é por ser o portador dessa expectativa que aquelas frias paredes lhe vêem os dias se indo, os cabelos embranquecendo, as articulações sendo tolhidas, lhe advindo a doença, a velhice, a incapacidade de lutar, mesmo quando chegam os ‘tártaros’... Então, o personagem, já muito debilitado, é mandado em uma carruagem estilosa, para a cidade que ele negou... Tornar-se herói já não lhe é possível. Ou ainda lhe restava um motivo?!..
“O Deserto dos Tártaros” conta-nos a história de Giovanni Drogo, que se deixa levar pela morna passagem dos dias repetitivos cheios de regras ditadas pelo regulamento militar. A cada página, das duzentas e vinte e uma, o que vemos é o adiamento da esperança, das alegrias e das glórias. Mas é, também, a história de todos aqueles que vivem cada dia com “uma obscura certeza de que o bom da vida ainda está para começar” (194); daqueles que vêem seus dias se arrastando, despovoados de novidades, como o deserto, sem que nunca lhes cheguem os tártaros, trazendo-lhes a possibilidade de grandes e gloriosos feitos que lhes justifiquem a existência insignificante...
É a história daqueles ‘desertores’ da concepção da vida como é vista por Miguel Torga:
“A vida é feita de nadas
de grandes serras paradas
à espera de movimento
de searas, onduladas pelo vento...
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Jean Paul Sartre, em seu SURSIS, coloca diante de nós, personagens que, depois de combaterem na guerra, nos lançam o doloroso grito drummondiano-existencialista: “E agora, José? / José, para onde?” Ele também vê a guerra como uma suspensão condicional da dura existência, como uma justificativa da descrença absoluta nos dias normais e na felicidade que é possível extrair deles...
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Ps. Aos que desejam ler “O Deserto dos Tártaros” e já sabem tudo o que acontece, porque minha resenha está cheia de ‘spoillers’, eu grito: não deixem de ler. O livro vale cada letra, cada palavra, cada frase, cada parágrafo, cada página, cada capítulo... A construção da linguagem, a beleza com que Buzzati constrói esse discurso, é, para os amantes da leitura, imperdível.
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