Sergio Carmach 29/09/2015
Reflexões não muito suaves:
Não temo a morte. Ela pode vir hoje, amanhã ou daqui a anos. Tanto faz. O que assusta não é a morte, mas seus métodos, muitas vezes lentos e cruéis. Se o martírio físico e psicológico for grande, faz sentido a vítima desejar partir antes do suspiro final, sem apego a esta terra penosa.
Concordem ou não com o juízo acima, ele é lógico, ao contrário da forma de pensar cultuada pela maioria das pessoas, sempre desejosas por mais tempo no planeta, custe o que custar. Vejamos... 95% dos seres humanos acreditam em um deus; e a maior parte deles concebe um mundo extramaterial de maravilhas: após a morte do corpo, a alma seria levada a um lugar paradisíaco, reencontraria pessoas queridas e seria feliz para sempre. Mas se a vida celestial é infinitamente melhor que a mais dadivosa das vidas terrenas, por que o desejo de permanecer na Terra mesmo quando a existência tornou-se um fardo insuportável? Pois é... Se não faz sentido o apego à vida material quando tudo vai bem, muito menos sentido faz quando tudo vai mal. Como o apego existe, conclui-se: ou as pessoas não acreditam nas maravilhas do além-túmulo, ou elas são incoerentes.
O que falo é de desejo, de querer ficar aqui por puro apego à matéria. Isso exclui as pessoas que entendem sua permanência na Terra como uma missão a ser cumprida. Uma coisa é sentir urgência de continuar no planeta porque isso seria necessário ao aprendizado e ao desenvolvimento do espírito; outra coisa é desejar o adiamento da partida para o paraíso celeste apenas para curtir – mesmo cheio de dores e aflições – mais um pouco os prazeres menores daqui: viagens, festas... Se o “Céu” é tão melhor, qual a razão desse apego, ainda mais em uma situação de dor?
É importante notar: o discurso aqui não versa sobre a pertinência do suicídio (ou qualquer outra conduta afim, como a eutanásia ou a ortonásia), mas sobre a impertinência de uma torcida irrefreável por mais tempo na Terra, especialmente quando a existência corpórea torna-se medíocre. Em resumo, a questão não é se devemos “fazer ou deixar de fazer algo”, mas se devemos “desejar ou deixar de desejar algo”.
O texto de Simone de Beauvoir, companheira de Sartre e filha ateia de uma católica tradicional, permite essas reflexões, não cabendo aqui uma análise do que a própria autora achava sobre o assunto. Que cada leitor também aproveite a narrativa de Uma Morte Muito Suave para fazer suas próprias ponderações sobre vida, morte, sofrimento, apego, incoerência do comportamento humano etc.
Trechos do livro:
"Mamãe acreditava no Céu; mas, apesar de sua idade, de seus achaques, de suas indisposições, estava obstinadamente agarrada à terra e tinha da morte um horror animal, instintivo." p.14-15
"Repousava e sonhava, a uma distância infinita de sua carne em putrefação (...) e toda ela mobilizada numa esperança apaixonada: curar-se." p.76
"Era o que a prendia ao mundo, tal como suas unhas estavam aferradas ao lençol, a fim de não soçobrar. 'Viver! Viver!'" p.77
"Trabalho duro o de morrer, quando se ama tanto a vida." p.79
"Esses instantes de tortura inútil, nada no mundo poderia justificá-los. (...) de um modo geral, em casos análogos ao de mamãe, o doente morre em meio a tormentos abomináveis. (...) Arranjar um revólver, matar mamãe com um tiro; estrangulá-la. Românticas e fúteis visões. Mas também me era impossível imaginar-me ouvindo mamãe, durante horas, soltando uivos lancinantes." p.81
"(...) mamãe não temia a Deus nem o diabo: somente deixar a terra." p.91
site: http://sergiocarmach.blogspot.com.br/2015/09/uma-morte-muito-suave.html