lucasfrk 15/11/2022
História do cerco de Lisboa ? Resenha
?A literatura é o que poderia ter sido; a história é o que foi.?
? Aristóteles
Neste romance, publicado em 1987, o escritor português José Saramago explora os meandros da paixão nos espaços históricos e literários, como viria fazer noutra obra tão ou mais notável como O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). A obra divide-se em duas histórias paralelas: a real, do cerco de Lisboa; e a fictícia, que surge da mente do revisor Raimundo Silva. Na trama, Raimundo Benvindo Silva é um humilde revisor de textos. Ao trabalhar em uma obra sobre o cerco de Lisboa, comete, deliberadamente, um ?erro? alterar injustificadamente uma certa frase de um livro sobre o cerco de Lisboa, da potência de um simples ?não?.
O cerco de Lisboa foi o momento decisivo de retomada da Península Ibérica pelos cristãos (no ano 1147 d.C.), até então dominada pelos mouros. É com o auxílio dos Cruzados que se dirigiam para o Oriente Médio ? após a Segunda Cruzada ? que as forças lusitanas do rei D. Afonso Henriques (1109-1185) conseguem expulsar os mouros da fortaleza. O ato ?gratuito? de Silva ? aparentemente insatisfeito com os erros historiográficos do livro ?, compelido a inserir um termo que muda os termos da guerra. No lugar, ele reescreve a história com traços pessoais: o romance entre um soldado e a concubina de um cruzado alemão, que espelha a crônica de amor tardio entre o próprio revisor falsário e sua editora, Maria Sara.
?Corrigir, corrijo eu, mas as piores dificuldades resolvo-as à maneira expedita, escrevendo uma palavra por cima de outra?. (p. 5)
É por meio da metaficção, com uma narrativa ? em terceira pessoa ? com o tempo bifurcado entre 1147 d.C e os anos ?80, que Saramago discute varias questões, como o papel do escritor, o registro historiográfico, o direito ao ?não?, e, em certa medida, às notícias falsas que se proliferam na contemporaneidade. É por meio de uma constante tensão entre realidade e ficção que o autor discute a fabricação da história, numa espécie de narrativa-moldura que engendra várias camadas discursivas. Essas duas narrativas espelhadas são tecidas maneira brilhante, fazendo o leitor cativar-se com as possibilidades do romance como um meio de recriar o passado.
José Saramago nasceu em 1922, numa família de camponeses, em Ribatejo, Portugal. Exerceu diversas profissões, como serralheiro, funcionário público, editor e jornalista, antes de dedicar-se unicamente à escrita. Laureado com o Prêmio Camões (1995) e com o Nobel de Literatura (1998), Saramago foi consagrado ao adotar um estilo que quebra com os padrões clássicos de narração ao abolir o uso tradicional da pontuação. Seus diálogos não possuem travessão ou aspas que indiquem a troca de turno das falas; escreve longos períodos com escassa pontuação; apresenta capítulos inteiros sem uma quebra de parágrafo.
Seus diálogos orais parecem evocar um fluxo de consciência, que ativam a atenção do leitor, numa abordagem quase cinematográfica, que deixa as personagens falarem por elas mesmas, continuamente e sem muita cerimônia. Seu discurso está imbuído de ditados e expressões populares. Caracterizado pela metalinguagem, Saramago tem uma abordagem social, que dá voz e vez aos humildes, às classes mais baixas.
?[?] Um homem sempre deve ir completo aonde o chamem, não pode alegar, Trago aqui esta parte de quem sou, o resto atrasou-se no caminho?. (p. 46)
Militante político e perpétuo provocador, Saramago transmite uma postura política afiada. Ao inserir um ?não? ao texto histórico, que desvirtua o ocorrido, Raimundo Silva, um sujeito calmo, paciente e de classe média, tem sua vida completamente alterada, assumindo, com o ato de rebeldia (talvez incorporando a revolta camusiana), um outro sentido a sua vida. São dois cercos a serem derribados ao longo da narrativa: o histórico, aparentemente tangível; e o fictício, no imaginário do editor, que aos poucos consegue levar em frente seu romance pessoal (a metáfora do cerco seria a prisão do próprio ?eu? de Raimundo).
Como que para exaltar o papel do escritor, Saramago expõe a subjetividade humana, pondo em evidência personagens paralelas, que representam as classes populares da sociedade, frequentemente ausentes do texto historiográfico. Saramago deixa claro o poder da arte literária ao revelar um passado significativo da história. O autor invoca o mito fundador da nação portuguesa para fazer uma releitura sob a ótica de uma personagem deslocada, que, por sua vez, dá protagonismo às figuras menos favorecidas pela história hegemônica (em grande parte branca e anglófona). Esse processo resulta numa desmistificação de ícones e da própria história nacional, bem como numa proposta reflexiva pertinente sobre o futuro. Em suma, vários pontos de vista sobressaem-se à voz do onisciente narrador.
?[?] E é neste instante que ao espírito vazio lhe acode uma ideia para ocupar este seu dia livre, algo que afinal nunca fizera na vida, não têm razão aqueles que se queixam da brevidade dela, se não a aproveitaram como lhes foi dada?. (p. 51)
Além de ser uma estratégia feita a partir da ambiguidade da história ?real?, a negativa de Raimundo Silva ganha uma outra significação: a afirmação do ficcional. O revisor reconfigura sua nova história a partir de vestígios ficcionais, evidenciando seu olhar sensível e criativo ao trazer novas perspectivas históricas sob ponto de vista crítico. Vale lembrar ainda que, na própria epígrafe do livro, assim como noutros, Saramago inventa algo fictício.
?Enquanto não alcançares a verdade,
não poderás corrigi-la.
Porém, se a não corrigires,
não a alcançarás.
Entretanto, não te resignes.?
(Do Livro dos Conselhos)