bobbie 08/08/2022
Controverso.
Há muitas ressalvas antes de fazer essa resenha. Muitos problemas. Monteiro Lobato deve ser escorraçado da história da literatura infanto-juvenil brasileira? Monteiro Lobato deve ter sua leitura proibida (já estamos de volta à ditadura?)? Há um problema grave em Reinações de Narizinho - e em todos os outros livros do universo do Sítio do Picapau Amarelo (que ainda não li)? Sim. Há alguns problemas. Um crime é cometido e reiterado inúmeras vezes nesta narrativa: um crime inafiançável e que deve permanecer um crime enquanto sua prática ousar persistir: o crime de racismo. O racismo é indefensável, deve ser combatido e extinto, suas raízes extirpadas da sociedade o quanto antes. Mas a leitura crítica da obra deve, em perspectiva, fazer exatamente isso: criticar. Monteiro Lobato é produto de sua época, uma época vergonhosa, recém-saída do abominável regime escravocrata. Lobato nasceu 6 anos antes da assinatura da Lei Áurea e, vejam só, a plena integração do escravos "libertos" não se deu automaticamente, com a famosa assinatura da Princesa Isabel. Aqui estamos, 134 anos depois, ainda com graves problemas para resolver essa herança maldita que constitui a estereotipação e o preconceito. O 'Sítio' envelheceu mal, envelheceu azedo, com gosto amargo e frases infelizes e, hoje, criminosas! E, vejam bem, este não é o único problema com este livro: Narizinho é vingativa: manda matar o Marquês de Rabicó porque o porco não age de acordo com as suas vontades e caprichos. A história descreve quase em detalhes o processo de abate de porcos e galinhas no sítio, com direito à menção explícita a enormes facas afiadíssimas, que tia Nastácia enfiava sem piedade nas pobres criaturas. O dr. Caramujo abre corpos de sapos e de espigas de milho (Marquês de Sabugosa) a sangue frio, para fazer "cirurgias" irresponsáveis (que exemplo perigoso para nossas crianças). Pedrinho é extremamente mandão, violento e mal educado. Na carta em que anuncia sua chegada ao sítio, faz à avó D. Benta exigências de suas vontades a respeito da maneira com que deseja - ou exige! - ser recepcionado. E a idosa atende seus caprichos sem colocá-lo em seu devido lugar, como se fosse sua empregada. Ainda sobre Pedrinho, o menino de apenas 10 anos (seria 9? Não me recordo com exatidão) resolve tudo à base da violência, com a ameaça de seu bodoque (ou estilingue) pairando sobre as cabeças e traseiros de qualquer um que ele queira controlar. E há episódios em que a arma é, de fato, utilizada. O pobre Marquês de Rabicó novamente sofre a ira dos primos, quando Pedrinho o ataca com o estilingue porque o porco não entra na carruagem que eles devem tomar para chegar ao Reino das Águas Claras. Enfim, a narrativa oitocentista de Monteiro Lobato é carregada de reflexos datados de uma época cujos hábitos e costumes, cuja postura de sociedade, era completamente diferente da que temos hoje, resultando em comportamentos e atitudes que hoje já não podemos em hipótese alguma tolerar e, mais do que isso: atitudes que precisamos combater ferrenhamente, sem deixar brechas para tolerância. Se vivo estivesse, e se estivesse produzindo o que produziu no século XIX, HOJE, Monteiro Lobato deveria, sem sombra de dúvida, ser preso. Mas sua produção ocorreu no século XIX e começo do século XX. Portanto, há alguns pontos que não podemos ignorar: 1) Querer apagar hoje, no século XXI, o desserviço de Lobato com relação ao respeito e à dignidade humana cometido na virada dos séculos XIX-XX (quando, repito, tudo o que ele falou nesse livro era "natural") não resolve o problema que vergonhosamente ainda enfrentamos. Não é simplesmente relegando uma situação ao esquecimento que ela se resolve sozinha. 2) Inegavelmente, o "Sítio" (e aqui me refiro ao conjunto das obras que consistem nas aventuras de Narizinho, Pedrinho, Emília e companhia no sítio de sua avó Benta) constitui um registro histórico e valioso de uma narrativa infanto-juvenil repleta de imaginação e criatividade, escrita com talento, inteligência e destreza, que AINDA pode despertar o lúdico e a criatividade nas crianças. 3) Quando lida, de forma criteriosa e pensando-se com cuidado a faixa etária do público-alvo, deve-se aproveitar a oportunidade para provocar uma leitura crítica, trans-histórica, e, acima de tudo, CONDENATÓRIA de práticas que devemos abolir completamente das nossas vidas. Por que não analisar o texto a fundo, destrinchando com inteligência os motivos pelos quais várias das passagens desse livro são completamente inaceitáveis? Por que não frisar a importância de estarmos vigilantes, de mantermos um alerta máximo contra toda e qualquer forma de discriminação? Por que não provocar o raciocínio dos motivos que fazem algumas falas de personagens execráveis e intoleráveis? Por que não promover debates e campanhas antirracismo tanto nos ambientes escolar como familiar, usando o texto como fonte do que é vergonhoso, inaceitável, criminoso? Por que não enfatizar sobre a importância de não sermos como Narizinho, Pedrinho e até mesmo Monteiro Lobato? Dinâmicas do tipo "O julgamento de Monteiro Lobato", por exemplo, podem resultar em boas oportunidades de aprendizagem e crescimento a partir do exercício intelectual da crítica e da autocrítica. Enfim, repito: não é varrendo um problema para baixo do tapete da história que ele magicamente deixa de existir e tudo passa a ficar bem. É importante lembrar que muitos clássicos da literatura brasileira e mundial cairão no mesmo problema, pois vão refletir a época em que foram escritos. Importante é usá-los com sabedoria, em nosso favor, para reverter um quadro que, infelizmente, ainda assola a humanidade: qualquer tipo de discriminação à pessoa humana.