DBC Jampa (@dbcjampa) 28/08/2020
Um bom clássico!
Lemuel Gulliver, cirurgião, inicia seu relato falando um pouco de sua vida antes das aventuras empreendidas e que preenchem este livro. Seu navio naufraga e ele encontra salvação em uma ilha, Liliput, mas lá chegando já foi imediatamente preso por pessoas minúsculas. Considerado um gigante e uma ameaça, ele passa um bom tempo preso e só consegue permissão de sair e vagar pela ilha quando garantiu ao Rei local que não machucaria ninguém - o povo confiou a princípio, mas o medo voltou a atormentá-los - afinal, perto deles, ele era um gigante e representava perigo. Um dos fatores mais curiosos é que a natureza autoritária dos liliputianos é logo verificada, no decorrer dos 8 capítulos pelos quais se estende esse relato. Ademais, tomar nota de completas futilidades é com eles mesmos, a saber: urinar ou não no palácio é um crime? Por que lado se deve quebrar um ovo? O gigante está seduzindo a mulher do rei?? - Tudo isso gera produção de artigos, criação de leis e regimentos e amplos debates políticos na ilha.
"(...) têm seguramente razão os filósofos quando afirmam que nada é grande nem pequeno senão em relação a outras coisas" (183)
Após ficar em casa por um tempo, Gulliver retoma suas viagens pelos mares. Novamente, tem problemas com o navio e precisa buscar refúgio no primeiro lugar que encontrou, em busca de água fresca (fazer aguada, mais uma expressão que descobri lendo a obra). Gulliver é encontrado por um fazendeiro de quase 22 metros de altura, que o leva para sua casa - ele se descobre, então, em uma terra de gigantes. O fazendeiro tem uma filha de 9 anos, Glumdalclitch, que brinca com ele como se fosse um bonequinho - e juntos, protagonizam mais uma cena bizarra, dentre as várias que me deixaram incomodada durante a leitura... O fazendeiro acha Gulliver muito peculiar e passa a exibi-lo por toda Brobdingnag por dinheiro, mas essas constantes exibições, sob péssimas condições, insalubres, Lemuel acaba caindo doente e é vendido pelo antigo amo para a Rainha. Em alguns momentos, questionei alguma xenofobia do Gulliver; fiquei incomodada com uma criança brincando sozinha de despi-lo; a sugestão do tráfico de pessoas; são muitos excessos, o que ele narra, não só o tamanho da cidade e das pessoas.
Esse trecho, mais especificamente o final da terceira viagem, foi meu favorito do livro, até agora. Não entendo como a TV e o cinema não deram o mesmo destaque a Balnibarbi que deram a Liliput e Brobdingnag. Sempre sinto que Swift espremeu material que caberia em 4 livros e pôs tudo aqui. Mas ele poderia ter lançado uma série de livros de cada país e focado melhor nos discursos diretos para dar mais dinamicidade à obra. Bem, é um relato de viagens, em todo caso... Mais uma vez lançando-se ao alto mar, Gulliver e seu navio foram atacados por piratas e o cirurgião, abandonado em uma ilha perto da Índia. Curiosamente, seu resgate desta vez não vem do mar, nem da Terra, mas do ar!! A ilha voadora de Laputa o recolhe e Gulliver se descobre em um novo reino fascinante, cujas pessoas se dedicam à música, à matemática e astronomia - embora falhem em ter um propósito mais pragmático do que o prazer. Em Laputa, existe um hábito de lançar pedras em cidades rebeldes no solo e isto (antes mesmo de A GUERRA NO AR, de H. G. Wells) pode ter inspirado ataques aéreos, no futuro. Gulliver também conhece a minha querida Balnibarbi. Trata-se de um reino regido pela ilha de Laputa. Lá, o viajante percebe o tamanho do dano que pode ser provocado pela busca cega da ciência que não tem um propósito claro. Há passagens muito divertidas (minhas favoritas no texto), em que ele ironiza a burocracia à la Douglas Adams. Uma passagem muito fascinante para mim foi a visita de Gulliver à Grande Academia de Lagado, em Balnibarbi. Ali, o núcleo intelectual do lugar, o viajante critica como são desperdiçados os recursos materiais e também o pessoal, em uma passagem tão hilária que não posso contar aqui, sem dar spoilers! Posteriormente, Gulliver chega ao porto de Maldonada, ainda em Balnibarbi, porque é onde ele poderá esperar um comerciante que o leve até o Japão. Durante a espera, Lemuel visita a ilha de Glubbdubdrib, a sudoeste de Balnibarbi. Nessa ilhota, o ponto mais forte historicamente falando, ele vai até a casa de um mago e discute História com ninguém menos que os fantasmas de Júlio César, Bruto, Homero, Aristóteles, René Descartes e Pierre Gassendi, posto que o mago pratica Necromancia e pode invocar mortos para trabalhar para ele de vez em quando. E Lemuel pensou algo como "Podemos convocar os mortos? Então por que não debater História com esse povo que está morto, livre de quaisquer vieses ideológicos? Vai ser top". Ele nunca se demora, porém. Ainda passeando por onde pode, ele chega à ilha de Luggnagg, ele encontra os struldbrugs, que são criaturas imortais, isentos de juventude eterna, que sofrem as enfermidades da velhice e são considerados legalmente mortos ao completarem 80 anos. Foi breve e ele não se demorou muito, mas fez algumas observações muito tristes que, para mim, configuraram um ponto de reflexão maior na leitura. Finalmente, chegando ao Japão, ele está decidido a nunca mais voltar ao mar. Mas será que ele não vai mesmo?
Na última parte, também a que aprofunda mais o debate social na obra, há passagens muito interessantes e ela merece ser lida com calma e paciência. Como não podia deixar de ser, Gulliver, que é cirurgião, mas tem alma de aventureiro, realmente queria ficar em casa, mas o senso de aventura e o tédio com seu emprego levaram-no de volta aos sete mares. Só que ele caiu nas mãos de piratas meio sacanas que organizaram um motim na embarcação, Lemuel é preso e depois despejado na primeira terra que foi encontrada. Naquelas terras estranhas, ele se depara com dois tipos muito diferentes de criaturas: os Yahoos e os Houyhnhnms, uma raça de CAVALOS falantes e extremamente inteligentes. Você leu certo. Alô, Cavalo de Fogo! Os Houyhnhnms governam o país, enquanto os Yahoos, que têm formas humanóides são os seres primitivos e bárbaros ali. É na vivência com os Houyhnhnms que Gulliver percebe o quanto é insalubre e nada salutar a sociedade humana, com seus muitos vícios e poucas virtudes. Ele até cogita nunca mais voltar ao convívio humano, visto como os Houyhnhnms são pacíficos e bem resolvidos socialmente. Mas uma reunião dos governantes determina que ele é um risco a todos e o expulsam de lá. No fim das contas, Lemuel é resgatado por ninguém menos que um navio português, o que nos remete aos grandes navegadores. Ele volta para casa, decide ser um ermitão, isola-se de todos, até mesmo da esposa e filhos e fica conversando sozinho, "com seus cavalos"... É inspirador, porém triste.