Nicolas523 06/07/2023
Todos desejam viver muito tempo, mas ninguém quer ser velho
"As viagens de Gulliver" ou, em seu título original: "Viagens em diversos países remotos do mundo em quatro partes por Lemuel Gulliver, a princípio cirurgião e, depois, capitão de vários navios", é um livro decisivo às sátiras, além de haver influenciado diversos autores que se sobressaíram nesse gênero, como Lewis Caroll, Kurt Vonnegut, George Orwell ? que em alguns ensaios comentou haver lido o livro na infância ? e até mesmo Machado de Assis. Sem contar que é um livro delicioso e divertidíssimo. O livro é uma crítica não só ao governo europeu da época, mas também uma crítica ao gênero de viagens, assim como Dom Quixote aos de cavalaria.
Swift abre o livro com uma série de cartas entre Gulliver e seu editor, trazendo um senso de realismo e verossimilhança em contraponto com a história fantasiosa que vamos ler. Ao mesmo tempo, a integridade do relato é questionada com a menção de trechos omitidos e até alterados. Após isso, seguem as quatro partes do romance: I. Viagem a Lilipute, uma terra habitada por pessoas diminutas, cujo ego e ambição são desproporcionais ao tamanho do corpo; II. Viagem a Brobdingnag, terra dos gigantes, onde todos os defeitos da humanidade são ampliados à vista do protagonista; III. Viagem a Laputa e outras ilhas próximas, onde os personagens estão tão absortos em seus estudos e teorias, que se tornam totalmente desinteressados das reais necessidades das pessoas comuns, preso em ideias abstratas e longe da vida prática; IV. Viagem a Houyhnhnm, terra em que cavalos são os seres racionais e humanos são selvagens.
É interessante (e também um tanto absurdo), o processo de Gulliver para se adaptar a cada nova terra. Ele tem aquele primeiro contato com os nativos, sempre meio tenso. Aprende a cultura, e é a partir da estranheza desses povos que as nossas estranhezas são também expostas. Fica fluente no idioma em semanas, o que só é explicado com um "tenho facilidade para isso". É um processo repetitivo ao longo das partes, mas que de maneira alguma me irritou ou me cansou durante a leitura. Esse processo linguístico ganha uma nova camada na última viagem, que é, na minha opinião, a mais impactante. Na língua dos houyhnhnmes não há palavras para expressar quaisquer conceitos negativos ou prejudiciais, o que demonstra que essa é uma sociedade livre de corrupção, desonestidade e violência. São seres puramente racionais e virtuosos, governados pela razão. Não há em seu idioma sequer uma palavra para "mentira", o mais equivalente a isso é a expressão "aquilo que não é". Ao nos colocar nessa posição de selvagem e escolher cavalos como seres racionais (porém bem poderia ser qualquer outro animal), é como se Swift dissesse que não há esperanças para nós, que o erro está na gente, em nossa espécie. Devido a essas descobertas, o tom final do livro é melancólico, ao contrário de todo o resto sempre permeado por ironias e humor. Ao enfim retornar a sua casa na Inglaterra, o narrador é incapaz de viver com seres humanos, os repudia por seu cheiro, aparência, língua, sendo até inabilitado de comer junto a sua própria família.
Com sua crítica mordaz à natureza humana e suas sociedades, "As viagens de Gulliver" nos convida a refletir sobre o paradoxo de nossa busca incessante pela longevidade, os meios de governo e dominação e nossa dita humanidade da qual tanto nos orgulhamos.