Alane.Sthefany 05/11/2022
Onde Estivestes de Noite - Clarice Lispector
O livro compõe-se com diversos contos, na perspectiva de alguém como se estivesse sonhando na noite, literalmente contos como se fossem os sonhos da noite.
Os sonhos segundo Freud são as manifestações de nossos desejos (de forma inconsciente), e durante o sono, esses desejos são apresentados sem censura, sem leis, e na maioria das vezes, sem a razão.
Em um dos contos, a Clarice chega a afirmar que:
?Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento?
Frequentemente a grande parte de nossos sonhos não têm sentindo, mas sempre partem de uma premissa.
São incompreensíveis, confusos, sem ordem de começo, meio e fim, e a Clarice traz isso de forma muito precisa e sucinta
Eu gostei, foi uma leitura difícil, como todos os livros da Clarice Lispector. ?
Trechos Preferidos ?????
O homem parou imediatamente de andar para olhá-la perplexo:
? Então que é que a senhora está fazendo aqui?
Ela quis explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sequer sabia o que queria dizer com o ?assim mesmo? nem com ?sua vida?, nada respondeu.
Foi então que lhe ocorreu que não havia com quem se permutar: que quer que ela fosse, ela era ela e não podia se transformar numa outra única. Cada um era único.
A velha fingia que lia jornal. Mas pensava: seu mundo era um suspiro.
Dona Maria Rita pensava: depois de velha começara a desaparecer para os outros, só a viam de relance. Velhice: momento supremo. Estava alheia à estratégia geral do mundo e a sua própria era parca. Perdera os objetivos de maior alcance. Ela já era o futuro.
Angela pensou: acho que se eu encontrasse a verdade, não poderia pensá-la. Seria impronunciável mentalmente.
Sou o que sou e não o que pensas que sou.
Dona Maria Rita era tão antiga que na casa da filha estavam habituados a ela como a um móvel velho. Ela não era novidade para ninguém. Mas nunca lhe passara pela cabeça que era uma solitária. Só que não tinha nada para fazer. Era um lazer forçado que em certos momentos se tornava lancinante: nada tinha a fazer no mundo. Senão viver como um gato, como um cachorro.
Não fazia nada, fazia só isso: ser velha.
Um diálogo que ela fazia consigo mesma:
? Está fazendo alguma coisa?
? Estou sim: estou sendo triste.
? Não se incomoda de ficar sozinha?
? Não, eu penso.
Às vezes não pensava. Às vezes a pessoa ficava sendo. Não precisava fazer. Ser já era um fazer. Podia-se ser devagar ou um pouco depressa.
Não sei por que, mas ninguém conversa mais comigo. E mesmo quando estou junto das pessoas, elas parecem não se lembrar de mim. Afinal não tenho culpa de ser velha. Mas não faz mal, eu me faço companhia.
Eu abandono tudo! tudo! e assim não sou abandonada, não quero depender senão de umas três pessoas e o resto é: Bom-dia, tudo bem? tudo bem.
Na vida se sofre mas se tem alguma coisa na mão: a inefável vida. Mas e a pergunta sobre a morte? Era preciso não ter medo: ir em frente, sempre.
Sempre.
Como o trem.
A velha era anônima como uma galinha, como tinha dito uma tal de Clarice falando de uma velha despudorada, apaixonada por Roberto Carlos. Essa Clarice incomodava. Fazia a velha gritar: tem! que! haver! uma! porta! de saííída! E tinha mesmo. Por exemplo, a porta de saída dessa velha era o marido que voltaria no dia seguinte, eram as pessoas conhecidas, era a sua empregada, era a prece intensa e frutífera diante do desespero. Angela se disse como se se mordesse raivosamente: tem que haver uma porta de saída. Tanto para mim como para dona Maria Rita.
E minha vida deve ser muito longa, a julgar pelos meus pais e avós. Podia alcançar fácil, fácil, cem anos, pensou confortavelmente. E morrer de repente para não ter tempo de sentir medo. Persignou-se discretamente e pediu a Deus uma boa morte.
As coisas são como são.
Assim: de repente. De repente o quê? Só de repente. Zero. Nada. Estava com trinta e sete anos e pretendia a cada instante recomeçar sua vida.
Com um longo apito uivado, chegava-se à pequena estação onde Angela Pralini saltaria. Pegou sua valise. No intervalo entre o boné do carregador e do nariz de uma jovem, lá estava a velha dormindo inflexível, a cabeça empertigada sob o chapéu de feltro, um punho fechado sobre o jornal.
Angela desceu do vagão.
Naturalmente isso não tinha a menor importância: há pessoas que são sempre levadas a se arrepender, é um traço de certas naturezas culpadas. Mas ficou-a perturbando a visão da velha quando acordasse, a imagem de seu rosto espantado diante do banco vazio de Angela. Afinal ninguém sabia se ela adormecera por confiança nela.
Confiança no mundo.
FALSA DOMESTICAÇÃO
O que é cavalo? É liberdade tão indomável que se torna inútil aprisioná-lo para que sirva ao homem: deixa-se domesticar mas com um simples movimento de safanão rebelde de cabeça ? sacudindo a crina como a uma solta cabeleira ? mostra que sua íntima natureza é sempre bravia e límpida e livre.
Se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo. Mas ? quem sabe ? talvez o cavalo ele-mesmo não sinta o grande símbolo da vida livre que nós sentimos nele. Devo então concluir que o cavalo seria sobretudo para ser sentido por mim? O cavalo representa a animalidade bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.
Era tão grande a minha tristeza humana por eu ter sido o que não devia ser, que jurei que nunca mais.
?O que vou anunciar é tão novo que receio ter todos os homens por inimigos, a tal ponto se enraízam no mundo os preconceitos e as doutrinas, uma vez aceitas.?
- William Harvey
?Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento?
Queriam elogiar a vida e não queriam a dor que é necessária para se viver, para se sentir e para amar. Eles queriam sentir a imortalidade terrífica. Pois o proibido é sempre o melhor. Eles ao mesmo tempo não se incomodavam de talvez cair no enorme buraco da morte. E a vida só lhes era preciosa quando gritavam e gemiam.
A pessoa vivia sem anestesia o terror de se estar vivo.
Não há nada a temer, quando não se tem medo.
A mulher velha e desgrenhada disse para o milionário: quer ver como você não é milionário? Pois vou te dizer: você não é o dono do próximo segundo de vida, você pode morrer sem saber. A morte te humilhará. O milionário: Eu quero a verdade, a verdade pura!
Ela era um bicho acuado. Normalmente dialogava consigo mesma. Dava prós e contras e sempre quem perdia era ela. Sua vida era uma constante subtração de si mesma.
?Não sei? é uma resposta ótima.
Eis o que acontece quando alguém escolhe, por medo da noite escura, viver a superficial luz do dia.
Nós dividimos o tempo quando ele na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.
O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer ?acorda?. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo. Para a hora. Para o instante.
Você não me quer mal mas também não me quer bem. Será que também eu estou ficando assim, sem sentimento de amor? Sou uma coisa? Sei que estou com pouca capacidade de amar. Minha capacidade de amar foi pisada demais, meu Deus. Só me resta um fio de desejo. Eu preciso que este se fortifique.
A dona do relógio me disse hoje que ele é que é dono dela.
Se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta ? como ardemos por ser chamados a responder ? cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio.
Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o silêncio te julga
Que se espere o resto da escuridão diante do silêncio (...) Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não se veem na escuridão. Que se espere. Não o fim do silêncio mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.
Uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio.
Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera.
Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
A solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher.
Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.
A morte é de grande escuridão. Ou talvez não, não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei, quem sabe se não tão escura. A morte, quero dizer.
Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão da dor.
Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.
Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva.
A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir.
A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.
Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora.
Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.
Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho uma só palavra a dizer.
As palavras já ditas me amordaçaram a boca.
Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas mentiras sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a mentir. Senão o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas, e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo.
Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então um maior conforto para o seu corpo. Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar.
Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.