Van 23/12/2020A história de formação das sociedades humanas sempre foram marcadas por inúmeros casos de violência. Os grupos menos favorecidos - ditos minorias - e, principalmente, as mulheres, sofrem de forma sistemática com esses atos, tendo seus direitos negados e, até mesmo, suas vidas ceifadas.
Neste contexto de violência, as mulheres sempre se levantaram e foram a luta - buscando condições melhores de vida. Assim, um episódio que teve bastante destaque ocorreu em Nova York, no dia 8 de março de 1857, quando 129 operárias morreram carbonizadas em um incêndio criminoso, causado no intuito de pôr fim as greves protagonizadas por essas mulheres. Algumas décadas depois, a ONU (Organizações das Nações Unidas) oficializou o dia 8 de março, como o dia internacional da mulher - data que simboliza a luta histórica de todas as mulheres por condições melhores de vida, por emancipação e contra a violência.
No universo literário há inúmeras obras que possuem personagens femininas fortes e que além de denunciarem situações de violência e vulnerabilidade social, também apresentam estratégias para superar esse difícil contexto. Um dos livros com esta temática e que merece destaque é o Reze Pelas Mulheres Roubadas, da escritora Jennifer Clement, lançado no Brasil pela editora Rocco.
Reze pelas Mulheres Roubadas traz uma história fictícia para denunciar acontecimentos reais que vem acontecendo em muitas cidades do México, o rapto de mulheres pelos homens do narcotráfico. Na trama somos apresentados à Ladydi Garcia Martinez, nossa personagem narradora, que nos conta como é ser mulher na cidade de Guerrero, através de sua rotina e de suas amigas - Maria, Paula e Estefani.
Jennifer Clement divide seu livro em 3 partes. A primeira, retrata a "infância" das personagens e logo ficamos chocados ao descobrir que para manter suas filhas a salvo, as mães tem como estratégias fazer cortes de cabelo masculinos, sujar os dentes e cavar buracos na terra para que suas filhas se escondam.
"Eu tenho que fazer com que as meninas pareçam ser meninos, tenho que deixar as meninas mais velhas com uma aparência bem simples, tenho que fazer com que meninas bonitas pareçam feias. Este é um salão de feiura, não um salão de beleza..."
A segunda parte nos faz acreditar que a vida de Ladydi será melhor, afinal ela consegue um emprego em Acapulco, um das principais cidades mexicanas. Na última parte, podemos acompanhar as consequências da estada de Ladydi no trabalho e em como a sociedade mexicana foi construída para manter as coisas como são, ao menos que se tente a sorte atravessando a fronteira.
Ler o livro da Clement foi uma experiência nova, afinal foi minha primeira oportunidade para conhecer uma escritora mexicana. A história é carregada de cenas fortes que beiram o absurdo, em muitos momentos a gente passa a se questionar como os homens podem ser tão cruéis, a ponto de fazerem tanta maldade com meninas, que mal chegaram a adolescência.
"Naquele momento, ... apareceu atrás da mãe. Ela parecia uma criatura branca e etérea. Segurava uma mamadeira em uma das mãos. E estava nua. No escuro, sob um rio de luar, pude ver os mamilos dos seus seios, o cabelo preto entre as pernas e a constelação de queimaduras de cigarro por todo o seu corpo. Pude ver as estrelas feitas de queimaduras de cigarro formando Orion e Taurus. Até seus pés estavam cobertos de queimaduras de cigarro... tinha atravessado a Via láctea e cada estrela tinha queimado seu corpo."
Também há passagens cômicas, que servem para que a gente possa respirar em meio a tanta dor. E ainda, no decorrer das páginas, somos surpreendidos a todo momento, com os atos de bondade e de resiliência que as nossas personagens encontram umas nas outras e em lugares mais inesperados - como num buraco cheio de escorpião extremamente venenosos.
"Nenhum daqueles homens .... quer se casar comigo... Eu não quero um homem, na verdade. Quero um bebê. Quero alguém para amar."
Em um momento em que a violência contra as mulheres tem sido cada vez mais noticiadas e denunciadas, Reze pelas Mulheres Roubadas é um livro extremamente necessário e atual, porque dá voz a personagens que nasceram num mundo construído para que elas fossem silenciadas e esquecidas. A obra é uma leitura indispensável.
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