Fiama 28/01/2023
Resenha: Gabriela, cravo e canela
Eu já havia lido um livro de Jorge Amado (Capitães de Areia), mas na época em que eu li, não tinha me atentado à grandiosidade do autor. Hoje, após ler Gabriela, Cravo e Canela, posso dizer com toda certeza que ele está entre os melhores que eu conheço. E esse livro veio parar na minha mão de forma bem despretensiosa: eu e o Felipe estávamos programando a viagem para Paraty e, em quase todas as matérias, havia a indicação do drink Jorge Amado e da cachaça Gabriela. Daí, eu decide comprar o livro para ler durante a viagem. E que grata surpresa, pois esse livro é sensacional!
O livro foi publicado em 1958 e foi escrito Jorge Amado, ele é baiano, nascido em Itabuna, município vizinho de Ilhéus, um autor conhecido por escrever crônicas de costumes. No livro, ele conta a história da cidade de Ilhéus por volta de 1925, que naquela época era uma cidade que estava se tornando conhecida pela produção de cacau.
A história é contada a partir de dois pontos de vista: no ponto de vista macro, conta a história da cidade, dos costumes da época, das movimentações políticas, da exploração do cacau; no ponto de vista micro, conta a história de amor de Nacib e Gabriela.
É interessante perceber que nessa época está acontecendo uma ruptura dos costumes, a palavra "progresso" é bastante utilizada para se referir ao novos costumes que estão sendo trazidos para a cidade. Ilhéus está deixando de ser uma cidade dos coronéis, para ser uma cidade dos novos políticos, das exportações, das bibliotecas, do porto, do restaurante...
A partir da oposição do novo e do velho, do progresso versus o tradicional, cria-se uma grande rixa entre mundinho falcão e o coronel Bastos. Mundinho é um jovem carioca, o caçula de dois irmãos que são políticos importantes, que chega em Ilhéus com a intenção de provar para família dele que ele é capaz de fazer seu próprio nome sozinho, por isso ele abre uma empresa para exportar cacau e, ao longo do empreendimento, ele começa a se envolver com a política local.
Do outro lado, o coronel Ramiro Bastos, tido como um chefe da região e com grande influência política dos governadores da Bahia. Além disso, é fácil ver a troca de favores entre ele e os fazendeiros da região, um verdadeiro conchavo político muito voltado à violência, com muitos jagunços e mortes.
É interessante perceber essa mudança política na sociedade que, ao mesmo tempo que é nítida a troca de um sistema de coronelismo e violência por outro um pouco mais democrático e pacífico, ainda é possível visualizar os conchavos de troca de interesses e corrupções, só que dessa vez menos violentos e informais. Um pouco do que vemos hoje!
Em meio a toda essa confusão se desenvolve o romance do árabe Nacib com a retirante Gabriela. Nacib é um empresário estrangeiro que monta seu bar em Ilheus. Ele um homem tranquilo e solteiro, de trinta e poucos anos, que é amigo de todos e tem sua vida voltada para o trabalho. Logo no início da história ele se vê num grande dilema pois sua cozinheira decide ir embora. Como um amante da boa comida, ele se vê desesperado pois não tem mais ninguém nem para cozinhar para ele, nem para fazer os quitutes do bar.
Entre as buscas por uma cozinheira, Nacib acaba encontrando Gabriela no antigo mercado dos escravos. Ela é uma moça, de uns vinte anos, que vinha à Ilhéus em busca de trabalho. Por causa da longa viagem a pé, Gabriela estava muito suja, descabelada e, mesmo assim, Nacib decidiu levá-la, pois estava desesperado em busca de uma cozinheira. Depois que Gabriela tomou banho e trocou de roupa, ele viu que se trata de uma mulher muito bonita, mas mesmo assim ele ainda precisava saber se ela saberia cozinhar para ficar com ela.
No outro dia, Gabriela cozinha e Nacib percebe que ela é a pessoa ideal e, a partir daí, se inicia a paixão dos dois. É muito interessante a forma que o autor descreve a Gabrela, pois ele a coloca como uma mulher ideal: sempre alegre, nunca reclama de nada, tudo para ela está bom, ela não se importa com salário, com roupas... está sempre disposta a agradar o Nacib, tanto com comidas, casa arrumada, quanto na cama. Enfim, tudo para ela está perfeito!
A fama de Gabriela vai se espalhando pela cidade e as propostas para ela ser uma "prostituta particular", cozinheira de casa de família, amante... entre outras coisas, começam a chegar. Essa situação começa a incomodar o Nacib que fica desesperado com medo de perdê-la. Ele começa a pensar numa forma de mantê-la por perto e, então, decide pedi-la em casamento.
A Gabriela não entende muito o que o Nacib quer com esse casamento, mas ela acaba se casando... A partir daí eu não vou dar mais spoilers, mas espero que vocês leiam para descobrir!
Um ponto que me chamou muito a atenção foram as críticas ao machismo da época que Jorge Amado, muito a frente do seu tempo, conseguiu trazer. O autor mostra personagens femininas com grande importância na história. Ele também levanta a questão da traição e do feminicídio que já começava a chocar a sociedade e dividir opiniões, trazendo a mulher como um sujeito de direitos e não apenas um objeto, uma propriedade de um homem.
A Gabriela é retratada como uma mulher que é um espírito livre, que defende o poliamor, ainda que o autor não utilize essa classificação. Ela questiona os papeis sociais, o viver de aparência, a hipocrisia da alta sociedade, ela intervém na política, ela defende seus amigos e é muito autêntica. Além dela, o autor fala sobre Malvina, uma jovem filha de um coronel que gostava de leituras proibidas, que se apaixona por um engenheiro divorciado, que luta pelos seus estudos, que enfrenta seu pai.
É uma obra leve e ao mesmo tempo complexa que retrata a sociedade brasileira, enquanto vamos lendo a gente para e se identifica com aquele pequeno retrato do Brasil, da sociedade brasileira.