jota 15/03/2014Inferno socialistaAnos 1980, leste europeu, logo após o acidente nuclear de Chernobyl. Num país do bloco soviético (que em nenhum momento da história é designado), o garoto Dzsáta (um apelido; seu nome também nunca é mencionado), 11 anos e filho único vive apenas com sua mãe num apartamento e seus principais amigos são os colegas de escola.
Seu pai é um preso político – foi levado num domingo pela Polícia do Estado - e executa trabalhos forçados nalgum lugar distante. A nora é desprezada pelos sogros, que acreditam que o filho foi preso por sua culpa, por suas atividades políticas. O avô de Dzsáta fez parte da elite dirigente do país e somente recebe a visita do neto duas vezes por ano, sem a mãe (uma puta, nas palavras do velho).
O sonho do menino é ver chegar o dia em que o pai será libertado e correrá para seus braços, e certamente isso será num domingo. Enquanto esse dia não vem – se é que algum dia virá, pois sabemos bem como os ditadores e tiranos agem contra aqueles que ousam discordar de suas ideias e doutrinas e aqui mesmo na América Latina temos exemplos disso, não? - Dzsáta vai levando uma vida cheia de aventuras, “entretido com jogos de guerra nos campos de trigo ou mesmo quando assiste a filmes pornôs no reservado do cinema”, como destaca a editora brasileira de Gyorgy Dragomán.
Dragomán, escritor nascido na Romênia mudou-se para a Hungria aos 15 anos (em 1988) e certamente levou para O Rei Branco sua experiência de pré-adolescente nesses países, então não exatamente modelos de democracia, pelo contrário. Apesar da realidade bruta em que o menino vive – até os professores de sua escola fazem trapaças com as notas dos alunos, para agradar os dirigentes do Partido (qual partido é desnecessário dizer, não?, e essa praga também existe no Brasil e faz parte desse governo trapaceiro que suportamos) – há muitos momentos bem-humorados no livro. Um deles é quando Dzsáta e um colega querem ficar doentes, faltar às aulas, pois não realizaram algumas tarefas escolares dentro do prazo e então comem giz. Vejamos:
“Szabi e eu logo descobrimos que giz não dava febre, era apenas lenda porque cada um de nós comeu um giz e meio e não nos aconteceu nada, além disso experimentamos também giz colorido. Szabi engoliu um verde e eu um vermelho, mas esperamos em vão durante uma hora e meia perto da escola, debaixo da ponte, não nos aconteceu nada, apenas fizemos xixi colorido, eu avermelhado, Szabi esverdeado (...) de nada valeu fazer xixi vermelho, não parecia sangue de jeito nenhum, o cheiro também não lembrava sangue, de modo que sabíamos que teríamos de inventar outra coisa [para enganar os professores].”
A história de Dzsáta tem início, meio e fim embora não seja linear. Ela é composta de histórias menores, episódicas, algumas engraçadas mas a maior parte terminando quase sempre num clima de crueldade, de absoluta ausência de lirismo, como se fossem quadros representativos de uma sociedade altamente controladora e repressora, como de fato são as sociedades que adotam como política de Estado o socialismo ou o comunismo. E aqui mesmo no Brasil vemos diariamente defensores dessas doutrinas totalitárias querendo implementar projetos de controle da imprensa, controle disso, controle daquilo, da sociedade brasileira, enfim. Nunca aprendemos com os erros dos outros...
Dragomán conta a história de Dzsáta do ponto de vista do próprio menino, de um jeito que tornou célebre outro livro com o qual O Rei Branco de certo modo dialoga: O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Existe uma palavra de origem russa para isso: skaz, empregada para designar, conforme ensina David Loge em A Arte da Ficção, “uma narrativa em primeira pessoa escrita numa linguagem que mais lembra a fala do que o texto escrito.” Então, adeus pontuação convencional, cuja ausência alguns leitores não entendem e erroneamente criticam o livro.
Mas continuemos com Lodge: em livros assim, o narrador “se refere a si mesmo como “eu” e dá a impressão de estar fazendo um relato espontâneo da história em vez de nos apresentar um registro escrito.” É o que acontece aqui. Azar de quem não conseguiu entender isso, de quem não soube apreciar todas as qualidades deste livro excepcional. Não vou chamar O Rei Branco de obra-prima, mas ele é uma, sim. Assim como o livro de Salinger ou Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell, O Perdido, de Hans-Ulrich Treichel e outros.
Lido entre 10 e 15/03/2014.