Stefanie Oliveira 17/04/2019As Relações Sociais Através da Leitura: O que está em jogo na leitura?Os Jovens e a Leitura: Uma Nova Perspectiva é dividido em quatro capítulos, que a autora chama de "encontros", são eles "As duas vertentes da leitura", "O que está em jogo na leitura hoje em dia", "O medo do livro" e "O papel do mediador". Michèle Petit é antropóloga e pesquisadora, possui outros livros publicados onde busca igualmente compreender e elucidar as relações sociais por meio da leitura. Algumas de suas obras mais famosas são A Arte de Ler ou Como Resistir à Adversidade e Leituras do Espaço Íntimo ao Espaço Público.
Bastante dinâmico, escrito em formato de palestra, baseado nas palestras que a autora cedeu na Colômbia, este é um livro fácil de ler e bastante explicativo. Seu formato não é cansativo, sendo indicado para muitos tipos de leitores, psicólogos, pedagogos, filósofos, sociólogos, antropólogos e principalmente professores. Embora a autora se baseie na educação na França onde vive, é possível comparar e analisar os mesmos fenômenos no Brasil. Além de diversas referências à esses fenômenos que ocorrem também na América Latina, Michèle traz aspectos bastante importantes para contrapor essas relações com a literatura ao redor do mundo.
A autora defende ao decorrer do livro que a leitura é uma experiência singular que como toda experiência implica riscos e nesse caso tanto para quem lê, quanto para quem o rodeia. A leitura é uma experiência singular porque exige autoconhecimento; enfrentar-se internamente para construir, de muitas formas, relações sociais diversas. Se livra de certezas e pertencimentos para confrontar a si mesmo. É no silêncio da leitura e do ambiente propício para ler que experimentamos esse confronto tão íntimo, que pode ser um prazer para alguns e dar medo em outros. Não é sem motivo que os poderes tenham temido tanto, ao longo dos séculos, a leitura; a leitura desloca, faz o leitor se rever. A leitura é uma máquina de guerra contra os totalitarismos, contra os sistemas rígidos de compreensão do mundo, contra os conservadorismos identitários, contra todos os que querem nos imobilizar de alguma forma.
O livro aborda diversas facetas da experiência literária através de entrevistas que a autora realizou com jovens de diversos países que ainda criança tiveram que abandonar seu país e cultura para morar na França, enfrentando diversas dificuldades sociais, econômicas, políticas, familiares e culturais. Possuindo 189 páginas, Os Jovens e a Leitura: Uma Nova Perspectiva é um convite à repensar a importância da leitura para a identidade e individualização dos jovens.
No primeiro encontro, a autora propõe uma reflexão sobre a inserção do jovem no contexto literário. Segundo ela, é por meio do livros que ocorre as relações singulares, ou seja, a relação única de cada jovem com a formação de sua identidade. Michèle Petit entrevistou cerca de noventa jovens para compor o livro, trazendo as experiências pessoais de alguns priorizando a diferença de bairros e contextos econômicos, buscando assim compreender e esclarecer tudo o que está em jogo na leitura. Para ela é necessário dar atenção à singularidade de cada um, e declara: É possível evitar reduzir esses indivíduos em meros exemplos e/ou estatísticas.
"A leitura e a biblioteca podem contribuir para verdadeiras recomposições da identidade. [...] Essa recomposição ocorre em uma relação com o conteúdo de uma biblioteca, uma cultura, um patrimônio."
A pesquisa busca esclarecer a relação dos jovens com a leitura, considerando diversidades espaciais (organização de espaços, acesso à bibliotecas e livros, funcionamento e disposição de acervos gratuitos, além de acesso à orientadores, sejam familiares, amigos, bibliotecários ou professores). O livro traz diversas perspectivas procurando entender melhor o funcionamento e disposição de espaços e pessoas que possibilitam tanto o acesso quanto o interesse dos jovens pelos livros. Mostra a importância da leitura, principalmente na fase escolar. Para ela é fato que a relação com os livros despertam a imaginação, cria-se um mundo singular em cada um, dando autonomia sobre suas próprias vidas e realidade, os torna seres humanos mais críticos e preparados para o presente e futuro, assim como seres humanos agentes de suas próprias vidas.
"Estou convencida de que a leitura, em particular a leitura de livros, pode ajudar jovens a serem mais autônomos e não apenas objetos de discursos repressivos ou paternalistas."
No segundo encontro, Petit traz evidência de como a leitura é um importante meio para modificar as realidades individuais e coletivas. Para ela o que está em jogo é a própria identidade daqueles que se aproximam dos livros, pois é por meio da leitura que esses indivíduos se aproximam de si mesmos, tomando as rédeas de seu destino e que por meio das memórias e incentivos cria-se laços diversos com a leitura, e a partir disso transforma-se o mundo.
"Quando moramos na periferia, estamos destinados a ter uma escola ruim, um péssimo trabalho. Há uma porção de acontecimentos que nos fazem seguir numa certa direção. [...] O fato de existirem bibliotecas [públicas] como esta me permitiu entrar aqui, conhecer outras pessoas. Uma biblioteca serve pra isso." - relata Daoud, 20 anos.
É por meio da inclusão, da facilitação do acesso à leitura que muitos jovens podem transformar sua realidade, melhorando não somente a linguagem e a escrita, mas melhorando principalmente as relações com outros indivíduos e espaços. Para ela, a verdadeira democratização da leitura é poder ter acesso à totalidade dessa experiência e isso ocorre por meio de três aspectos fundamentais:
ACESSO AO SABER: o primeiro aspecto é o de que a leitura é um meio para se ter acesso ao saber, aos conhecimentos formais e desse modo pode modificar nosso destino no meio escolar, profissional e social.
APROPRIAR-SE DA LÍNGUA: o segundo aspecto da leitura é o de que a leitura é também uma via privilegiada para se ter acesso a um uso mais desenvolvido da língua, língua que pode representar uma terrível barreira social.
CONSTRUIR-SE A SI PRÓPRIO: o terceiro aspecto da leitura é o de que a habilidade desigual para servir-se da linguagem não pressagia somente uma posição mais ou menos elevada na ordem social, a linguagem não pode ser reduzida a um instrumento, se dá com a construção de nós mesmos enquanto indivíduos falantes.
No terceiro encontro, Michèle Petit nos faz refletir sobre o medo que muitas pessoas, principalmente o sistema, possui dos livros. Ler consiste em uma atividade solitária, implica na abertura para a linguagem do outro. Ela defende que na falta de destreza no uso da língua não existe verdadeiro exercício da cidadania, expondo as dificuldades que jovens estrangeiros enfrentam ao mudar-se para a França e terem de se adaptar ao país com uma enorme bagagem cultural de seus próprios países, bagagem que ao longo da vida acabam abandonando. Quanto mais capazes de nomear o que se vive, mais nos tornamos aptos à transformar nossas vidas.
O medo não é somente do livro, mas inclusive dos muitos aspectos que os envolve. Medo esse que não parte somente dos jovens com pouco acesso à linguagem e escrita por serem pouco familiares, mas sim dos que temem possíveis revoluções políticas. Por muito tempo o ócio foi demonizado e ter tempo para ler era muito mal visto. O acesso à leitura preocupa os que detém poder, justamente porque não queriam deixar de controlar aqueles que liam. O que estava em jogo era a transição de novas formas de vínculos sociais que por muitos motivos os ameaçavam.
É possível observar, ao longo da história, que o medo que as pessoas detentoras de poder sentem é em perder o monopólio dos sentidos, deixar de controlar a evolução intelectual dos indivíduos. Durante muito tempo mulheres e negros foram proibidos de acessar conteúdos de linguagem impressa, eram afastados da aprendizagem da leitura para que pudessem aceitar a condição de explorados mais facilmente, para que não pudessem se rebelar contra o sistema opressor. Muitos autores eram perseguidos e assassinados. A autora também salienta que o medo também circula o meio familiar de pais não letrados que temiam as consequências da leitura e do "ócio", muitas vezes proibindo seus filhos de frequentar bibliotecas ou passar tempo demais lendo.
O último capítulo, o quarto encontro, traz reflexões através de análises sobre a importância, influência e o papel dos mediadores quanto ao acesso aos livros e ao gosto pela leitura. Para a autora o papel do mediador, seja ele um familiar, amigo, bibliotecário ou professor, e sua margem de ação, suas intervenções, estão longe de ser desprezíveis. O papel dos mediadores é fundamental para os jovens, é através do apoio de um ou mais mediadores que pode-se incentivar a transformações de seus destinos.
Michèle Petit cita as falas da jovem Hava que encontrou apoio das bibliotecárias de seu bairro através da troca de experiências e conhecimentos, apoio que foi fundamental para que Hava pensasse e trabalhasse a quebra do apego aos pais, que eram contra a leitura, e buscasse se profissionalizar para seguir uma vida acadêmica, se preparando para enfrentar diversos obstáculos e transformar seu destino. É o caso também da jovem Zohra que sem incentivo da família e a hostilidade deles quanto aos livros, encontrou apoio em professores e bibliotecárias, e de maneira autodidata se formou bibliotecária.
"A biblioteca foi uma descoberta extraordinária, pois modificou a minha vida. Permitiu-me sair de casa, encontrar pessoas, ver coisas interessantes." - comenta Zahra.
Para a Michêle é essencial a transmissão do amor pela leitura. Segundo ela, o gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com livros, é preciso trocas, incentivo, hospitalidade e acolhimento desses mediadores para não só aproximar jovens da leitura como mantê-los interessados, principalmente os inspirando.