João Ks 24/08/2024
Escritos da casa morta - Fiódor Dostoiévski.
Se há algo de que não se pode privar o homem é de sua capacidade de pensamento. Subtraiam-lhe as posses, arranquem-lhe de seu lugar, metam-lhe na prisão, e ainda assim subsistirá aquilo que lhe é próprio, o traço distintivo, seu poder especulativo.
Em geral essa sutileza do espírito humano está a salvo das violências externas que o Estado ou a sociedade possa decretar sobre o indivíduo. Nem o mais vil assaltante pode despojar sua vítima da liberdade de pensamento, tampouco o conseguirá o carrasco ou o policial a serviço de um Estado opressor.
Quando nos chegam às mãos as observações redigidas por Dostoievski a propósito dos anos em que permaneceu encarcerado na Sibéria, rigorosamente privado de todo o conforto e submetido a trabalhos forçados, é espantoso constatar, não obstante tudo isso, que ali ele permaneceu sob a posse de sua mais refinada capacidade de especulação, de seu poder de imaginação, do livre-pensamento.
Daí resulta que o Escritos da casa morta se abre como um quadro espetacular de rostos, de feições e de tendências do espírito humano, onde são traçados com primor de retratista os diferentes tipos humanos que experimentaram as agruras do degredo e da prisão no curso daqueles anos ao lado do protagonista do livro.
Como escreve o tradutor Paulo Bezerra, a casa morta foi o “laboratório do gênio”. E se Dostoiévski pôde extrair algo de positivo dessa amarga experiência carcerária é justamente a possibilidade do mergulho nesse caleidoscópio de retratos humanos, de onde hauriu a matéria-prima, a substância primeira, para seus exercícios de escrita psicológica. O Escritos da casa morta tem ligação direta com os romances de maturidade do autor.
Sabe-se que Dostoiévski experimentou o inferno da prisão quando jovem. No entanto, a obra não se apresenta formalmente como um livro de memórias, mas sim como uma ficção narrada pelo personagem fictício de nome Aleksandr Petrovich, ainda que se possa deduzir que os relatos ali contidos estejam fundamentalmente baseados na realidade vivida por Dostoiévski.
Ao contrário do que podemos pensar num primeiro momento, o fato de a prisão estar localizada na cidade de Omsk, em plena Sibéria, não é propriamente uma infelicidade para o narrador, que elogia as condições de vida na província e até se encanta com a beleza natural da região.
A Sibéria não é o problema. O problema é o que o Estado faz ali com as pessoas.
A opressão sofrida pela condição de prisioneiro (galé) na fortaleza de Omsk é completa, isto é, expressa-se moral e fisicamente. O detento é obrigado a conviver a contragosto com os mais diferentes tipos de pessoas, gênios diversos, idades e etnias variadas. Aliás, misturam-se ali condenados por crimes comuns, crimes políticos e crimes militares; bandidos de primeira viagem e criminosos inveterados; gente inocente e homens terrivelmente cruéis, serial killers, “quasímodos morais”. Ademais, tudo é precário: as casernas apertadas, sombrias e sufocantes, as tarimbas duras e estreitas, e a comida rala e insípida.
Mas acima de tudo são os trabalhos forçados que mais penalizam os detentos. E não é tanto um martírio de ordem física, pois as atividades nos campos de trabalho de Omsk são até amenos quando comparados às de outros locais da Rússia. Mas é o sofrimento moral decorrente da submissão compulsória a esse trabalho o que mais oprime o detento. Trabalhar sem propósito; trabalhar não para si, mas para outrem e sem retribuição; e o que é ainda pior, frequentemente se trata de um trabalho puramente inventado, sem propósito, apenas para ocupar o preso. Eis o maior tormento moral.
Além desses tormentos que tocam a todos no presídio, Aleksandr Petrovich (e assim Dostoiévski, supomos) vivencia um tormento particular, que somente toca a ele devido à sua condição social. É que na qualidade de detento proveniente da nobreza - ainda que tenha perdido seu título após a condenação – ele se sente profundamente alijado de todos no presídio. Embora se esforce para granjear o afeto e a simpatia de seus colegas, e até o consiga em certa medida, sente que no fundo não está em comunhão com eles, que estes não são seus companheiros, e que nunca o aceitarão como tal, devido às suas diferenças de origem.
Dostoiévski tem apreço pela gente humilde, e reconhece seu valor: “Nossos sábios têm pouco a ensinar ao povo. Eu até afirmo o contrário: ainda devem aprender com ele”.
Lá, a maioria dos galés são do povo, da gente simples; e jamais seriam capazes, por razões tão enraizadas no seu ser, na sua concepção de mundo, a receber o nobre Aleksandr Petrovich no seu seio como se fosse um deles; têm respeito por ele, até amizade (embora muitos o odeiem por sua condição privilegiada), mas daí a considerá-lo um companheiro, um dos seus, já é outra coisa por demais antinatural. E isso castiga profundamente Aleksander em seu íntimo, que está ali mais solitário do que qualquer um. Cai sobre ele uma dupla pena.
É claro que o que fica do livro são as impressões muitas vezes horríveis dos martírios na prisão; as cenas profundamente tristes testemunhadas no hospital da fortaleza, para onde eram enviados os doentes moribundos e os condenados recém-castigados com mil, duas mil, três mil vergastadas aplicadas por uma fileira de soldados, uma espécie de corredor polonês.
Mas ainda nesse contexto desanimador que oprime o sujeito, onde frequentemente o preso está esvaziado moralmente, onde lhe falta a seiva da esperança e a inclinação para a percepção aguda das coisas; mesmo ali ainda frutificou o poderoso pensamento do autor, sua arguta capacidade de observação do gênero humano. E isso é admirável. É a flor brotando no lixo, a planta rebentando no asfalto árido.
Grita Dostoiévski: “E quanta mocidade fora enterrada inutilmente naquelas muralhas, quantas forças poderosas ali pereceram em vão! Vamos, é preciso dizer tudo: vamos, aquela era uma gente extraordinária. Pois é possível que aquela fosse até mesmo a gente mais talentosa, a gente mais forte de todo o nosso povo. E aquelas forças poderosas perecerão em vão, pereceram de forma anormal, ilícita, irrecuperável. E de quem é a culpa?”