JJ 10/03/2017
Ler outro livro de Dostoiévski é como reencontrar um velho amigo. Por mais voraz que seja o leitor, dificilmente este autor russo passa menos de uma semana em nossa cabeceira - ou em nossas cabeças, dada a força de suas histórias. Mesmo assim, dos 17 livros lidos este ano, Recordações da Casa dos Mortos foi apenas o quinto mais demorado até agora.
Isto porque, em um ritmo de conversa, Fiodór conta meticulosamente o funcionamento de um presídio na Sibéria, baseado em sua própria experiência de vida. Não é à toa que ele é um dos meus autores favoritos. Dostoiévski une não só uma trama de qualidade com discussões e devaneios sociais fundamentais até hoje. Nesta obra, o foco no sistema carcerário, na efetividade da aplicação de penas duras (banimento, cruéis e de trabalhos forçados), aumenta o interesse de amantes do Direito, como eu.
O primor na escrita dispensa comentários. O ritmo da trama consegue se manter alto quase todo o tempo. Da chegada do autor da história à Sibéria, da divisão por classes, do fruto do trabalho reservado aos vícios, dos raros dias de banho e festas... Todos os pormenores ajudam a entender uma sociedade específica (a Rússia czarista do século XIX) sem deixar de ser fonte de argumentos para defender qualquer tese na área jurídica na sociedade atual.
Quando, em fls. 209 da edição lida, ele levanta bandeiras ao dizer "... esses cegos e surdos cumpridores da lei não compreendem nem percebem sequer que a aplicação literal da lei, sem a interpretação do seu sentido, leva a reações, dessa prática só advindo consequências piores..." nós entendemos porque Dostoiévski é tão fundamental como Montesquieu ou Ihering, além do flagrante caráter filosófico de uma obra desta magnitude.
Apesar disto, Recordações da Casa dos Mortos ainda se encaixa como obra pré-existencialista do autor, apesar de ser a última. Ele ainda se socorre a expressões como "inefável" e "acepção" de forma corriqueira, mas quem é fã interpreta isso como algo típico do nosso velho amigo. Ainda há espaço para momentos extremamente descritivos. No início da segunda metade da obra, quando o narrador vai à enfermaria e convive com a parte mais desumana do cárcere (roupas sujas, latrinas à noite para suas necessidades e os grilhões sem sequer um desaperto) a riqueza de detalhes faz parecer que ele escreveu a obra na própria prisão.
Porém, mesmo quando se socorre a narrativas mais diretas, como da realização de uma peça de teatro pelos detentos, o russo se mostra preocupado com aspectos internos do ser humano. Em fls. 160 da edição lida, por exemplo, ele finca que "... a tirania é um hábito, tem a propriedade de se desenvolver, e se dilata a tal ponto que acaba virando doença ...".
Quando decide concluir a história e pesa sua experiência no presídio - para ressuscitar da casa dos mortos - diz que se forçou a isso porque, se pudesse, escreveria cinco vezes mais. Mas, sabe que isso seria uma boa ideia?