Aline T.K.M. | @aline_tkm 18/11/2016Sem delicadezaSempre tive curiosidade com relação às obras de Nelson Rodrigues. Lembro de assistir à série A Vida Como Ela É..., baseada nos textos do autor, no programa Fantástico quando era criança – não era muito apropriada para a minha idade na época, mas abafa o caso. Quando comecei a ter contato com teatro, lá nos meus 13 anos, é que manifestei real interesse em conhecer as peças de Nelson Rodrigues, coisa que hoje, como estudante de teatro, passou a ser uma intimação.
Justamente por já conhecer a trama, ler Vestido de Noiva integralmente foi uma experiência marcada pela expectativa – lá nas alturas –, mesmo antes de iniciar a leitura. E preciso dizer que em nenhum momento me decepcionei.
A peça em três atos traz a história de Alaíde que, enquanto passa por uma cirurgia após ser atropelada, relembra a rivalidade com a irmã, Lúcia, de quem roubou o namorado, Pedro, com quem acabou se casando. Ao mesmo tempo, Alaíde fantasia um encontro com Madame Clessi, uma prostituta que fora morta por seu amante no início do século 20.
Escrita e levada ao palco pela primeira vez em 1943, sob a direção do polonês Ziembinski, Vestido de Noiva trouxe uma inovação para a época – a ação se divide em três planos diferentes, que se intercalam no cenário – e entrou para a história da dramaturgia brasileira, sendo um marco para o teatro moderno brasileiro.
O plano da realidade é aquele que orienta o leitor sobre os acontecimentos envolvendo Alaíde – o acidente no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, e os comentários dos jornalistas, o hospital, a cirurgia. O plano da memória reconstrói o passado de Alaíde a partir de suas lembranças, especialmente a do dia de seu casamento, cujos acontecimentos já pressagiavam um futuro trágico. Certa névoa de confusão e suposições caracterizam esse plano, como por exemplo, a presença de uma tal Mulher de Véu, com quem Alaíde tem um conflito logo antes da cerimônia e que a persegue em diferentes momentos.
Já o plano da alucinação traz Madame Clessi como figura de destaque. Alaíde tomou conhecimento de sua existência por meio de um diário encontrado no sótão da casa de sua família, que no passado havia sido um bordel. Em sua fantasia, a prostituta a ajuda a recuperar momentos e situações perdidos em sua memória. Também neste plano existe a confusão – Alaíde revela em si a idealização e a necessidade de fuga e libertação, em contraste com uma realidade banal, até mesmo repugnante. Fatos e pessoas se misturam, e tudo segue uma razão diferente daquela da realidade.
Colocando em evidência a classe média carioca, em Vestido de Noiva – assim como em suas demais obras – Nelson Rodrigues é despudorado ao falar sobre família, adultério e casamento.
É num ambiente tomado pela hipocrisia que a ação tem lugar. Predominam a mentira, os desejos reprimidos e a obsessão; o autor não poupa – nunca! – nem mesmo as relações familiares, já que é no cerne da família que se revelam as traições e deslealdades de seus personagens.
Polêmico, psicológico e forte, tanto no conteúdo como na forma, Vestido de Noiva traz temas universais, esfregando-os na cara do leitor com uma delicadeza praticamente inexistente. É preciso despir-se de julgamentos excessivos e aceitar uma degradação que, se é velada na vida, aparece escancarada nas obras de Nelson. Essas manchas, alimentadas pela tragédia da vida, tomam proporções grotescas quando vistas de perto e fazem dos personagens seres tão humanos quanto nós. E de ser humano, ah!, disso Nelson entendia, à sua maneira e como ninguém.
LEIA PORQUE...
A segunda peça de Nelson Rodrigues marcou não apenas sua carreira como também a trajetória do teatro brasileiro. De grande intensidade e carga dramática, Vestido de Noiva revela pedaços da podridão humana – dela, nada sai incólume. Veja também 5 motivos para ler Nelson Rodriques.
DA EXPERIÊNCIA
Visceral e sórdido, do jeito que eu gosto. Fácil de ler, mas de digestão lenta – e muito proveitosa.
Depois da leitura, sabe o que aconteceu? Bateu uma mega vontade de ler a versão em graphic novel da história, com roteiro de Arnaldo Branco e ilustrada por Gabriel Góes, lançada também pela editora Desiderata/Nova Fronteira em 2013.
FEZ PENSAR
Nas discussões das aulas de História do Teatro – segundo um professor que tive, o teatro de Nelson Rodrigues não poderia ser chamado legitimamente brasileiro, uma vez que suas tramas não seriam mais que inspirações originadas das obras de Tennessee Williams, autor de Um Bonde Chamado Desejo. Não vou entrar no mérito da questão, até porque não tenho suficientes bases para tanto, mas é algo realmente interessante de ser debatido, não?
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