Iara Caroline 20/03/2024
?Quel giorno più no vi leggiemi avante?
Ambientação de uma vida burguesa sem preocupações urgentes e uma vida calma. É como começa o romance. Meu aspecto favorito talvez seja esse. Eu amei como o Eça possui uma sagacidade em sua escrita, uma maneira de traçar os desdobramentos antes mesmo de acontecerem. É como uma forma de impulsionar a narrativa antes mesmo dela acontecer. Ele passa o livro todo trazendo pequenas nuances do que quer dizer, do que se trata as personalidades e as perspectivas das personagens.
No prefácio dessa edição há uma delineação acerca da escola literária realista, seu contexto histórico e sua base filosófica. Entre todas as escolas, ela provavelmente é a que me interessa mais. É no realismo, de fato, que as coisas são vistas pelo que são. E não há como ter um exemplo melhor do que O Primo Basílio. Na narrativa de Eça, tudo ganha uma perspectiva objetiva e real demais. Para além do ponto de vista do oprimido, a empregada negra, é impossível não me referir à própria protagonista e ao enredo principal. A traição de Luísa não é nem de longe uma trama supérflua, nem mesmo ela própria. Apesar de me causar repulsa a maior parte do tempo, a construção dessa personagem simplesmente me encantava. Luísa é a própria crítica que Eça faz da escola literária anterior, ela é a personificação dessa distinção. Sem muito o que fazer além de ser esposa e patroa, as horas que ela passava a ler romances (do romantismo) com certeza ironizaram seu destino. No entanto, um destino que por pouco tempo se pareceu com os livros que lia. A realidade sem encantos e cruel vem a tona como o próprio objetivo do livro. O seu amado, Basílio, não passa do que na realidade ele obviamente é. A sua atitude, por mais que se busque justificativas, não passa da atitude de alguém fraco que escolheu o seu próprio destino. Para minha surpresa, não foi sequer a personagem emblemática Leopoldida que a conduziu ao erro. Ela fora sozinha, por circunstâncias ou não.
É óbvio que a critica social que, no geral, o realismo busca vai além. Na cena em que aparece pela primeira vez Juliana, a criada, há um contraste muito alto entre a manhã tranquila de dois pequenos burgueses e a própria feição e linguagem corporal daquela que os servem. Juliana aparece doente, suja, com feições amareladas. É quase um incômodo à paisagem anteriormente criada. Como diz Lilian Jacoto no prefácio, é a primeira vez que uma personagem como ela tem sequer o direito de uma aparição real. A angústia e o sofrimento dessa personagem são colocados em destaque. As suas reclamações, o seu ódio, as suas dores e principalmente, seu quarto abafado são intencionalmente mencionados para causar esse incômodo. Não há como se incomodar menos com a sua situação do que com os questionamentos de conduta de Luísa. Paula, personagem essencial do romance, afirmara: ?Falo da alta sociedade, das fidalgas, das que arrastam sedas! É uma cambada. (?) No povo há mais moralidade. O povo é outra raça!? E é agora que o leitor, a não ser que se tenha uma conduta muito distorcida, irá se importar mais com o que acontece com a pobre, não mais com as pequenas decepções da protagonista delicada.
Com um final trágico, a agonia dos capítulos finais causam um desconforto sufocante. ?No culto da ironia que projeta sobre todos os elementos do romance a sua ambiguidade, a prosa de Eça sabe jogar com as expectativas do leitor, confundindo seus afetos de medo, raiva e compaixão.? A agonia de Luísa e os regalos e desmandos de Juliana, na inversão dos papéis, quase enganam o leitor. É, no entanto, nas mortes que tudo volta a ser reestabelecido. Na aflição de ver sua recompensa final fugir de suas mãos, morre Juliana sem um alma sequer para a velar. Morre também Luísa condenada com suas próprias escolhas, com uma casa cheia e com o perdão de seu marido. Pior ainda, continua vivo Basílio. Sua preocupação é estar sozinho, na repugnante cidade de Lisboa.