3.0.3 02/02/2024
Unindo a emoção e a razão num incrível amálgama de alquimista
“[...] bestas paridas de um mesmíssimo ventre imundo, éramos todos portadores das mais escrotas contradições.”
Narrado em primeira pessoa, Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar (1935-), deflagra a vida cotidiana de um casal, oferecendo vislumbres da dinâmica comum, porém complexa, de seu relacionamento. A obra mergulha nos pensamentos, nas impressões e nas emoções do protagonista, pontuando uma noite apaixonada de amor – descrita com ricos detalhes – e a rotina matinal do casal – especificamente o café da manhã.
A narrativa abre focando na conexão emocional e sexual entre o narrador e a sua companheira. Por meio de descrições, o leitor tem um panorama da vida e da rotina do protagonista, apesar dos acontecimentos da história se desenrolarem em poucos dias. Inquieto e intenso, cada capítulo tem um único parágrafo, marcado por muitas vírgulas e um ponto final. Ainda que isso possa soar estranho, acrescenta um senso de urgência e intensidade à narrativa, preparando o cenário para os momentos culminantes da obra.
“[...] atrelado à cólera – eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida.”
O dia avança normalmente até chegar ao capítulo “Esporro” – ápice da trama, tiro de partida. Desencadeado por um incidente trivial, que se transforma em uma explosão de raiva, um cálice de ódio, desenvolve-se um confronto verbal, fervoroso e combativo entre os dois. No entanto, é fundamental ressaltar que o que acontece aqui não se trata de uma mera altercação entre casais. A forma como se desenrolam as trocas de provocações e de insultos entre o casal é eloquente, evocando uma sensação de orgasmo por meio de um texto arquitetado em fluxo musical. O domínio da linguagem e a maneira como as ideias são expressas são a verdadeira tônica da narrativa. A habilidade lexical de Raduan Nassar dimensiona a intimidade do casal de forma espantosa. As descrições expõem ao mesmo tempo detalhes provocativos e belos. Embora seja extenso, com mais de cinquenta páginas em único parágrafo, é praticamente impossível pausar a leitura, pois a prosa potente e o estilo da narrativa ditam o ritmo para a discussão frenética do casal. Transitando com velocidade entre diversos assuntos, a obra combina com maestria uma infinidade de ideias. O conflito que se segue é fabuloso, com insultos que vão do pessoal ao ideológico, onde colapsa da boca do protagonista a sua criação arquitetônica-metafórica.
Para compreender o livro e a profunda expressão artística que ele incorpora, é necessário aprofundar o problema da linguagem à própria obra. Não se trata do criador ou do destinatário, mas do seu poder para lançar a verdade. Embora aparentemente subjetiva, a voz narrativa serve como uma máscara que esconde o problema mais profundo do livro. Essa linguagem, que varia dependendo do meio, reflete metafisicamente o mundo, as emoções e as sensações humanas. Por meio da arquitetura da linguagem, a obra capta um momento da realidade que não difere de nenhuma outra experiência. A força da verdade exposta reside na capacidade da obra exteriorizar o seu eu interior, que a sociedade muitas vezes marginaliza, testemunhando assim o caráter irreconciliável da sua existência.
A obra não tem como finalidade a comunicação. Em vez disso, evolui por um meio de linguagem que rejeita a ideia de transmitir qualquer mensagem específica. Enquanto fenômeno de linguagem e obra de arte, Um copo de cólera é essencial e afirma a sua independência, primando por uma estrutura original que a diferencie das demais obras. Além disso, expõe um cenário inesquecível, ainda que esquecido por muitos escritores. Este cenário é a existência de uma linguagem distinta que estabelece uma ligação profunda entre a expressão poética no mundo e a linguagem da humanidade. O compromisso poético de Um copo de cólera para com essas duas linguagens não procura estabelecer um modelo ou equivalência, pois a linguagem poética não envolve diretamente finalidades práticas ou assuntos vivos. Em vez disso, simplesmente nomeia e capta a essência da sua própria existência.
Agarrando-nos às maravilhas que têm nomes, atravessamos Um copo de cólera como quem atravessa a névoa da existência, como quem atravessa o mundo à medida que as palavras partem. É um problema de linguagem. Em busca de alguma distração que nos proteja da compulsão da palavra, enredamo-nos na essência das folhas, inflamadas por corpos que declinam para o esquecimento, para o vazio, com destino a ninguém. Os ciclos dos corpos ganham forma e são revitalizados em línguas alternativas, adornadas com diferentes denominações. A tinta ressecada nos lábios da fera deixa um sabor acre. Ao ler Um copo de cólera – o sonho das águas –, transpiramos linguagem, arranjando a antologia da nossa raiva. Transborda, por fim, a palavra, ressoando a musicalidade silenciosa dos abismos.
A sua conclusão acena à imprevisibilidade. Um copo de cólera vai além de um simples delineamento prático de pontos geográficos para uma navegação segura. A expedição incorpora algo muito mais grandioso, e é preciso audácia e coragem para nos aventurarmos no território desconhecido da nossa existência. Para compreender a profundidade e a essência do seu rico vocabulário e para enfrentar a complexidade que acompanha a sua leitura, deve-se ler a obra lenta e atentamente, pois, embora breve, trata-se de um livro denso. É só por meio desse gesto que podemos compreender o profundo impacto de Um copo de cólera e prestar homenagem ao legado artístico de Raduan Nassar e às possibilidades incalculáveis que se desenrolam sob a sua linguagem. É uma experiência literária verdadeiramente magnífica.
Durante a década de 1970, Raduan Nassar escreveu dois livros renomados. No entanto, a sua insatisfação com o mundo literário o levou a abandoná-lo. Após isso, mergulhou na vida rural, mudando-se para a sua fazenda. Depois de algum tempo, doou a sua propriedade para a universidade (UFSCAR). Aos 88 anos de vida, Raduan Nassar permanece avesso aos holofotes, nunca se acostumando com a atenção e com a popularidade que surgem em seu caminho.
“confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa; e você só não sabe que virou porque – sem ser propriamente uma novidade – não há nada que esteja mais em moda hoje em dia do que ser fascista em nome da razão.”