Thiago275 17/03/2019
Um manifesto antirracista
Tenda dos Milagres é o terceiro romance de Jorge Amado que leio. Na escola, li Capitães da Areia e lembro de ter gostado muito. Ano passado, li O País do Carnaval, primeiro romance do autor, e achei apenas ok. Mas Tenda dos Milagres já mostra um escritor maduro, com um estilo bem marcante e sedutor, embora talvez não muito apropriado para as ultra sensibilidades de hoje em dia.
Acompanhamos a história em duas linhas narrativas diferentes. Em primeira pessoa, acompanhamos Fausto Pena, um poeta, e como ele recebeu a incumbência de pesquisar sobre Pedro Archanjo, personagem quase folclórico de Salvador, bedel da Faculdade de Medicina, que escreveu alguns livros sobre a cultura baiana e sobre a miscigenação brasileira. Ocorre que o Prêmio Nobel Americano James D. Levenson entrou em contato com a obra de Pedro Archanjo e de repente, de autor obscuro e rejeitado, ele virou cult. E, na segunda linha narrativa, em terceira pessoa, acompanhamos a trajetória do próprio Pedro Archanjo.
O jeito como Jorge Amado escreveu o livro é bastante interessante para fazermos uma comparação entre os diferentes momentos que o Brasil passava e de como as circunstâncias podem mudar, e as coisas permanecerem, de certa maneira, iguais.
O livro foi publicado em 1969 e a história de Fausto Pena se passa nessa época (é o tempo presente). Em plena ditadura militar, é interessantíssimo acompanharmos a censura (velada ou não) que havia, principalmente na ocasião em que um seminário sobre Pedro Archanjo e sobre miscigenação foi cancelado, pois daria ensejo a "ideias subversivas". Mas claro que o Governo não teve nada a ver com o cancelamento. Foram os próprios organizadores que, baseados num pensamento bastante sensato, decidiram não levar a ideia à frente.
As homenagens feitas a Pedro Archanjo por ocasião de seu centenário são tão distantes da realidade que chegam a ser cômicas (além de hipócritas).
Acompanhando Pedro Archanjo, conhecemos a Tenda dos Milagres, onde vivia seu amigo Lidio Corró, riscador de milagres, ou seja, pintor de cenas milagrosas encomendadas por devotos que iam entregá-las na Igreja. Mas não era só isso a Tenda. Era um misto de gráfica (onde os livros de Pedro eram impressos), teatro, local de reunião do povo, enfim, uma espécie de faculdade particular.
Em oposição, havia a Faculdade de Medicina, onde Pedro era bedel e muito querido entre os estudantes, mas local onde encontramos figuras odiosas, como o Prof. Nilo Argolo, racista convicto de que os negros eram seres inferiores e toda a sua cultura era inferior. Por ironia, a faculdade de medicina era um lugar onde grassava a anti-ciência.
Em contato com Zabela, mulher idosa, hoje pobre, mas que provém de uma família antigamente muito rica e influente, Pedro Archanjo começa a pesquisar sobre os antepassados de todas as famílias ricas de Salvador e, para surpresa de ninguém, desenha a árvore genealógica de figurões (inclusive Nilo Argolo) sem apagar a linhagem negra que todos têm.
Isso causa um escândalo sem precedentes, mas o que Jorge Amado quer nos mostrar aqui, de maneira lúdica, é que a miscigenação é um traço intrínseco da formação do Brasil enquanto país, não existindo brasileiro (com família aqui há gerações) sem traço de sangue branco, negro e indígena. E, longe de representar um demérito, ai reside a força e a beleza de nosso povo.
Para representar isso, Jorge Amado descreve dois episódios muito significativos. Primeiro, Pedro Archanjo se envolve com uma sueca (que na verdade, era finlandesa). Seu nome era Kirsi, branca como a neve, e o filho deles, de volta à Europa, será o Rei da Escandinávia, com traços de brancos e negros.
Outro episódio é quando um determinado personagem se forma na faculdade e a comemoração envolve uma roda de candomblé e também o can can parisiense. espetacular.
Jorge Amado descreve também a perseguição aos terreiros, à capoeira, tudo que fosse ligado à cultura afro-brasileira, perseguição que, infelizmente, não acabou até hoje.
Eu não poderia terminar essa resenha sem falar da linguagem de Jorge Amado, seu traço sensual e gráfico. Nenhum outro autor descreve a beleza feminina, carnal e angelical, como ele. Mas aqui, o politicamente correto passa longe. Amado chama as coisas pelo nome. Velha é velha. Gorda é gorda. Mulato é mulato etc. As pessoas que enxergam racismo e preconceito nisso infelizmente estão perdendo uma grande obra.
Não atribuí nota 5 por alguns trechos no final do livro, quando Pedro Archanjo já está no fim da vida, que achei prolongados demais sem necessidade. Mas, a despeito disso, o livro é sensacional.