Naty 11/03/2017
Rico em pormenores e super críico. Pena que não dou lá uma fã de Jorje Amado.
Esse livro é uma defesa de tese construída por Jorge Amado em forma de narrativa. Em todo o tempo, ele defende o misticismo, critica hierarquias sociais, critica posicionamentos tendenciosos e mentirosos da imprensa, além de, como em todos os seus livros, faz uma abordagem do universo da Bahia.
Primeiramente, quero dizer que não foi um livro que eu gostei ou que é fácil de ler. Na verdade, ele está mais para um compilado crítico de tudo o que Jorge Amado acreditava do que para uma leitura divertida. A linguagem do autor também fica um pouco mais densa e ele aborda o universo de duas épocas distintas simultaneamente. No entanto, nada disso pode negar a originalidade e a forma bem tramada como cada página foi escrita.
A seguir, destacarei diversos pontos e excertos interessantes desse livro:
-“Nesse território, a capoeira angola se enriqueceu e transformou: sem deixar de ser luta foi balé.”
-Em cada parte do livro, ele usa distintas vozes narrativas ou funções da linguagem, desde a referencial até a fática.
-“Como se aquela gente...visse no finado não um ser de carne e osso e, sim, um coorte de heróis e mágicos, tantas e tais façanhas lhe atribuem. Jamais consegui estabelecer o limite entre a informação, a invenção, a realidade e a fantasia”---Essa parte é bem interessante já que destaca a forma como as pessoas respeitavam e viam o famoso Pedro Arcanjo, mas não é só isso. Esse excerto é o comentário de um pesquisados que escreveu a biografia de Pedro Arcano para enviá-la ao estrangeiro ganhador do prêmio Nobel que evidenciou conhecer e admirar as obras de Pedro Arcanjo.
É engraçado perceber que, muito depois da morte de Arcanjo, ele foi relembrado, no entanto, não por ser valorizado em seu país, mas em países diferentes. É apenas a partir daí que suas obras começam a ser lidas e, até mesmo intelectuais que rejeitavam os ideais ali propagados, começam a elogiar e fazer cerimônias de celebração às suas obras.
No meio dessa parafernália de hipocrisia, o conteúdo da obra de Arcanjo acaba esvaindo aos poucos já que ele é transformado apenas em um marketing ou marco. A realidade da vida dele: pobreza, candomblé, luta pelo direito dos mulatos, etc são resignados ao segundo plano e ele vira mais um mote da indústria cultural. Ele, a desconstrução do tradicionalismo, a complexidade do pensamento, foi decomposto em míseras imagens irreais de realidade.
O exemplo mais absurdo dessa desconstrução de sua imagem foi sua utilização para o marketing de um restaurante. Dá para acreditar??? Alguns excertos que revelam mais do que eu acabei de explicitar são:
“Lendo-os, tinha-se a impressão de que o nome e os livros de Arcanjo jamais se encontraram na obscuridade e no anonimato de onde os foram tirar as citações de Levenson, e sim, em permanente evidência e brilho, proclamados aos quatro ventos. ”
“Pedro Arcanjo a serviço de refrigerante! É o fim! ”
-Um outro personagem que se destaca na obra é um professor da faculdade de medicina que é extremamente defensor dos preceitos tradicionais e fica enfurecido com a propagação de práticas que ele considera desrespeitosas à sua moral excludente, estamental e preconceituosa.
“Espumava o insigne cidadão e eu não lhe nego motivos para tamanha cólera. Dedicara sua existência a clamar contra a pornéia, a dissolução dos costumes, os maiôs, Marx e Lênin, o abastardamento da...última flor do Lácio, e que resultados obtivera? Nenhum...pornografia nos livros...Fidel Castro...desprezam as regras da gramática”
-Outro fator de grande peso na obra foi o conteúdo de um dos livros o qual apresenta a árvore genealógica das famílias da Bahia e suas diversas mestiçagens. Naquela época, a visão do branco como superior era muito forte o que gerou inúmeros embates dele com pessoas que não aceitavam ter ascendentes negros. Para ir ainda mais fundo, Jorge Amado já introduz aspectos mais contemporâneos como a valorização do dinheiro.
“...não há branco nem negro, há rico e pobre tão somente...o dinheiro embranquece”
- Jorge Amado ainda traz um relato bem interessante e preconceituoso de um jornal: “As gazetas protestavam contra “o modo por que se tem africanizado entre nós, a festa do carnaval, essa grande festa da civilização”...fracasso das grandes sociedades carnavalescas...”o que será do carnaval de 1902, se a polícia não providenciar para que nossas ruas não apresentem o aspecto de terreiros”. Nessa época, o espírito antipopular da imprensa via as manifestações culturais de extração africanas como bárbaras, um obstáculo ao avanço da civilização em terras bahianas.
- O amor livre também reaparece nessa bra também na figura de Arcanjo: “ Tudo o que é bom tem sua duração exata, tem de se acabar no prazo certo se quisermos que perdure para sempre”
-Quando Arcanjo foi transformado em “grande homem” e um jornalista leu a biografia que um dos personagens fez contando a vida dele na íntegra, o jornalista afirma algo muito interessante e que corrobora para reafirmar o que já expressei acima: “Meu caro porta, aprenda esta lição: um grande homem tem de possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da pátria, exemplos para as novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude”.
Em suma, Jorge Amado defende que a identidade negra não interessa ao Brasil e sim a identidade mestiça. Há outros pontos que não abordei como a história, em paralelo, de um amigo negro de uma família de brancos que se apaixona pela filha da família e só aí nós, leitores, conseguimos ver que o preconceito está em quem diz não ter preconceito. Ele podia até ser amigo de um negro, mas sua filha se casar com um nunca. No fim dessa trama paralela, esse menino acaba estudando e ficando muito rico, momento esse em que o problema vai diminuindo já que preto rico é branco, né?