Leonardo.S 21/01/2024
Qual a pior miséria?
Os Miseráveis, escrito pelo francês Victor Hugo em 1862 se tornou um dos maiores clássicos de todos os tempos. Não apenas literal, já que possui mais de 1500 páginas. O livro é reconhecidamente um dos mais icônicos do escritor e da França. Além de uma forte narrativa política retratando a revolução contra a monarquia, o autor faz questão de abordar inúmeras misérias que só a alma humana é capaz de suportar.
Aqui o autor apresenta todas as faces que podem ser consideradas miseráveis. Miserável por falta de amparo, por falta de dinheiro, por falta de oportunidade, por falta de amor ou também por uma intima falta de caráter. A história se passa numa França pré-revolução, a pobreza para o povo está em níveis terríveis, a monarquia detém todo o poder nas mãos enquanto a sociedade definha. Um homem chamado Jean Valjean acaba por passar 19 anos preso... seu crime inicial, roubar 1 pão. Todas as desventuras possíveis acontecem decorrente de um simples crime pela fome. A desproporcionalidade não se dá apenas pelo roubo, mas as consequências de se estar preso e tentativas de fuga do prisioneiro. Mais adiante, conhecemos a triste história da Fantine, mulher sofrida, desenganada pelas promessas de um amor duradouro, se entregou e ficou a deriva na vida. Agora com uma filha para criar sozinha, Fantine sabe muito bem o que pensa a sociedade em relação a mães solteiras, trabalhar, criar, dar amor e atenção é impossível numa sociedade que aloca o julgo moral a frente de qualquer realidade. Agora a pequena Cosette (filha de Fantine) sofrerá assim como a mãe, toda a maldade que uma sociedade desse tipo pode ofertar.
A obra por toda sua extensão, apresenta diversos cenários onde os principais personagens vão se encontrando e influenciando diretamente a trama um de outro, Jean Valjean e Cosette serão extremamente ligados por uma tragédia, a trama de ambos se entrelaçam, dois miseráveis que tentam sobreviver a tudo isso. O autor traz a revolução francesa como pano de fundo, o cenário é propicio a abordar uma série de problemas sociais que aparecem (e existem até os dias de hoje). A falta de dinheiro nas camadas mais pobres da sociedade revela uma série de outros problemas daquela realidade, como violência, roubo, enganação, exclusão, abandono, mentiras, sequestros e tantas outras atrocidades que residem na alma humana, mas que só ganham força diante da dificuldade derradeira.
O livro ganhou certa notoriedade no mundo todo por tratar de temas universais. A revolta inicial de Jean Valjean contra sua realidade pobre, as escolhas que teve que fazer para ajudar que seus sobrinhos não morressem de fome e frio, traz o dilema moral sobre quebrar regras para não morrer. O presidiário que reconhece seu crime e que busca sua redenção, não se preocupa com a lei juridica, ele busca se redimir ajudando outro a não passar pelas misérias que outrora ele mesmo passou. Valjean não é dotado de um espírito bom por ter nascido assim, mas por ter sentido a fome e a desesperança bem de perto. Nesse ponto, o empírico fala mais alto, e tudo aquilo que acredita teoricamente, perde força diante da iminência da morte. Cosette é uma pequena criança que se vê num mundo extremamente cruel, onde seus próximos buscam tirar vantagens uns dos outros a todo momento. Foi privada de um amor materno, amor esse que diabolicamente retirado da pequena criança.
Já como contraparte de Jean Valjean temos o exemplar inspetor Javert, dotado de uma racionalidade gritante, a lei é a lei, que independe de circunstância e contexto. Jean Valjean busca se adequar a essa sociedade que o trata a mão de ferro, mas Javert o tem como um bicho a ser cassado, um homem que perdeu o direito de viver entre os livres, o homem que não merece respirar o mesmo ar do cidadão de bem daquela época, enquanto não pagar por tudo que a lei o obriga. Como tudo é preto ou branco para o inspetor, nada o abala, nada que a vida apresente no emocional pode atrapalhar sua profissão. O melhor dos melhores no ramo. Aos poucos, acompanhamos uma narrativa política ferrenha, grupos sociais que buscam derrubar a monarquia por não poderem mais suportar tantos abusos. Estudiosos, revolucionários, trabalhadores que convivem com a fome extrema, se juntam para montar a resistência há um poder extremamente injusto e indiferente.
O que mais chama atenção no personagem de Valjean é sua bondade incondicional. Ele interpreta literalmente o conceito de justiça humana (não a da lei do homem), mas aquela que habita no campo moral. Nem tudo que está na lei está certo, e nem tudo que é fora dela está errado. O personagem desperta em nós leitores um sentimento bom, um novo olhar além da emoção do ego, aquela lição de amar ao próximo mais do que a si mesmo.
Embora seja um clássico, muitos ainda não conhecem a obra, suas mais de 1500 páginas assustam um pouco, acredito que muitos ainda não encaram por esse motivo. Confesso que é uma leitura lenta, cansativa em dadas passagens. O autor não faz questão de ser menos detalhista, há capítulos inteiros que apresentam partes da história da França contemporânea, seus movimentos políticos, a mudança social, tudo para dar uma melhor base narrativa aos acontecimentos seguintes. Para o leitor não francês, pode dificultar um pouco ter essa imersão, já que não conhecemos a geografia nem a história intrinsicamente.
Com certeza após a leitura, você leitor passará a considerar mais as situações, os dilemas nem sempre se apresentam claramente, é necessário um exercício forte de empatia para conseguir enxergar os dois lados da história. Jean Valjean é uma prova de que você pode ter cometido um crime, mas isso não te faz uma pessoa ruim. A ombridade, a moral, o dever humano reside em cada um de nós, mas cada qual busca exercê-la de uma forma que lhe faça mais sentido. É possível vilanizar Javert por não ter o ponto de vista de Valjean, mas por ser quem é, não consegue enxergar as coisas de forma diferenciada. Todos acabam por ser vítimas de suas próprias experiências e forma de ver a vida. Isso traz um pouco mais de reflexão para as atitudes de cada personagem. E ao fim o autor consegue de forma magistral abordar o fim que cada qual buscou ao longo da trama. O fim de Javert é o mais impactante e reflexivo. Quantos de nós não somos acorrentados em nossas próprias crenças e não estamos abertos nem a pensá-las e muito menos a mudá-las?
Por último e não menos importante, a obra teve diversas adaptações e sua mais famosa, foi o filme de 2012, dirigido por Tom Hooper. O romance foi adaptado para o cinema como um musical e não agradou a grande massa de fãs de cinema, porém, foi fiel, trazendo em seus diálogos todos os mínimos detalhes da trama e todo peso da pobreza e da revolução. O personagem principal Jean Valjean foi interpretado por Hugh Jackman, O inspetor de policia Javert foi interpretado por Russell Crowe, Fantine (mãe de Cosette) foi interpretada por Anne Hathaway e Cosette por Amanda Seyfried.
Victor Hugo é fantástico, fica aqui minha mais sincera recomendação de uma obra que colocará você a pensar e acompanhar a vivência de pessoas que não tiveram boas perspectivas na vida, mas que buscam mudar isso um passo de cada vez. Aos que acreditam que politica não influencia diretamente nossas vidas, precisa urgentemente ler essa obra. Eu já havia lido O HOMEM QUE RI escrito por Hugo, que também é outra obra que tem por base apresentar a crueldade humana, solidão e solidariedade perante a dificuldade.
Pode parecer apelativo, mas esse tipo de miséria assim como apresenta Os Miseráveis, está ao nosso redor todos os dias, em diferentes famílias, situações, pessoas e contexto. Percebo que a missão do autor em cada um de seus livros, é nos convidar e repensar essa pressa em julgar o outro com nossos valores. Trazendo para os dias atuais, em dias de rede social apelativa e odiosa, ter um pouco de calma e reflexão, pode ser uma ótima saida, antes de começarmos a erguer as tochas e mover acusações, talvez seja importante dar um passo para trás e avaliar contextos. Victor Hugo ainda tem outra obra voltada ao tema semelhante ao apresentado aqui, que se chama: O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO (ainda não li, mas está aqui me esperando).
Última observação: O elenco politico assim como a trama politica é extremamente importante para entender o momento da França e como se deu a revolução, mas não abordei nesse longo texto, pois acredito que o que mais me impactou foi o plot principal.
site: https://espacols.com.br/livro/os-miseraveis/