spoiler visualizarFlá 22/02/2023
Emocionante! Esplêndido! Atemporal!
"Se há algo mais pungente do que um corpo agonizante por falta de pão, é uma alma morrendo à fome de luz."
Os Miseráveis, tanto quanto emocionante, é um livro estranhamente inquietante. A força, audácia e perspicácia com que Victor Hugo tratou de temas como a miséria, a injustiça, a degradação humana, a desigualdade social, as revoluções políticas de uma França conturbada e as práticas religiosas fazem desse livro talvez a obra mais ambiciosa de toda a literatura. Reunir tamanhas discussões em torno de personagens e histórias complexas e traçar ideais sociais que justifiquem ou consertem o "erro social" não é uma tarefa simples e muito menos isenta de críticas, já que tudo se trata de um ponto de vista exclusivo do narrador.
Jean Valjean, por ter roubado um pedaço de pão para dar de comer aos sobrinhos, é condenado a cinco anos de prisão nas galés. Devido a suas tentativas de fuga, a pena é expandida e o forçado só fica livre após dezenove anos. Como todo ex-forçado, leva em sua documentação os registros de sua prisão, o que dificulta seu alojamento nos primeiros dias de liberdade e sua aceitação social. É na cidade de Digne que, sem ter onde dormir e comer, acaba encontrando o Monsenhor Benvindo, homem conhecido pela sua extrema bondade e compaixão. Abrigado na casa do bispo, acaba por lhe roubar a prataria e é pego pela polícia no dia seguinte. No entanto, uma ação totalmente inesperada vinda do Monsenhor Benvindo altera pesadamente o rumo do ex-forçado e abala suas emoções. O coração embrutecido e a alma rancorosa de Jean Valjean começam a sofrer uma transformação comovente.
Em outra parte, somos apresentados à história de Fantine, costureira que fica grávida de um jovem que a abandona e, por não ter condições de criar sua filha, a deixa aos cuidados de um casal de taberneiros, os Thenardier, que, corruptos e perversos como são, exploram a jovem mãe. Essa filha chama-se Cosette, menina maltratada e injustiçada pelo casal, a personagem que, durante sua infância, mais causa comoção dentro de toda a história.
Também somos apresentados a Mário, jovem que se envolve em movimentos revolucionários com seus amigos e que, por conta de divergências políticas e familiares, acaba abandonando a casa de seu avô e se entrega a uma vida que o levará à miséria.
Além destes, vários personagens têm papel importante dentro da história, como o pequeno Gavroche, menino de rua astuto e zombeteiro, responsável por passagens cômicas e também emocionantes dentro do livro, e Eponina, que contrasta com uma das ideologias sobre o resultado que a miséria causa ao ser humano, assunto debatido durante algumas digressões do autor.
A trama é composta por dezenas de personagens, o que faz a citação de todos, ou pelo menos da maioria, impossível em uma resenha. No entanto, a genialidade de Victor Hugo é capaz de unir todas essas histórias de uma forma impecável, comovente e surpreendente durante o intervalo de alguns anos pelo qual é composto o romance.
A política é uma peça importante em Os Miseráveis. Ela não abrange apenas o núcleo de Mário e dos Amigos ABC, responsáveis por um dos pontos altos do romance, que acontece durante as insurreições da década de 1830. Abrange a formação do conceito de Victor Hugo a respeito do que pensa acerca da miséria não só material, mas intelectual. Fortemente associado ao poder judiciário, esse tema figura como uma das razões pelas quais a miséria humana existe e não é curada. O narrador defende que a omissão por parte dos poderes superiores, a justiça reservada ao alto escalão social e a falta de luz (conhecimento) são os pilares básicos que constituem a miséria humana.
O romance é recheado de digressões, muitas delas bastante longas. Nessas "interrupções" o narrador nos mostra em detalhes a batalha de Waterloo, a história dos conventos e ordens religiosas de Paris, a saga da construção dos canos de esgoto da cidade e discussões bastante filosóficas em relação à educação, à política, à religião e a Deus, que aqui funciona como uma espécie de jogador, muitas vezes apelidado de destino e responsável pela quantidade de coincidências dentro da história.
Coincidência, aliás, é um fato bastante notável. Elas não são poucas e são minuciosamente organizadas. Concepções de destino e coincidência são particulares não só a quem participa, mas também a quem vê. Aquele que a transforma em realidade pura, simples e em acontecimentos casuais sem deixar que isso seja perceptível é mais do que um contador de histórias, é um grande mestre da pena. A meu ver, nenhum autor que tenha lido até hoje usou melhor seu narrador para convencer o leitor como Victor Hugo.
E qual é o resultado dessa mistura? Os Miseráveis é uma obra simplesmente magnífica. Por mais que o narrador pause sua história para dar espaço a suas digressões, esse tempo não é perdido. Esse recurso dá ao leitor uma sensação de proximidade não só com os personagens, mas também com o narrador. Victor Hugo aproveita-se desse recurso que maneja tão bem para aplicar o maior tom de naturalidade possível ao seu enredo. Não há quem não imagine a tristeza de Cosette e não se compadeça; não há quem não sinta pena de Fantine; não há quem não sinta nojo pelos Thenardier; não há quem não se alegre com Gavroche e queira adotá-lo; não há quem não sinta uma emoção mais acalorada pelo Mário; não há quem não se divirta com as reações que o Monsenhor Benvindo provoca nas pessoas; não há quem não questione a vida e seus mistérios quando olha a trajetória de Jean Valjean. Mais do que isso: não há quem não se envolva de corpo e alma, experimentando todo o tipo de emoção, sentindo a realidade dos personagens no seu âmago, questionando todo o tipo de injustiça que o ser humano é capaz de causar a si e a seus semelhantes. A ansiedade do leitor dura até a última página.
Caberiam muitos adjetivos para descrever Os Miseráveis e ainda assim não seriam suficientes. É mais do que um livro, é a reunião de vidas que nunca escaparão da mente do leitor, é a reunião de situações que serão lembradas para sempre, é a reunião de ideias, conceitos e questionamentos que perpetrarão séculos e ainda assim não poderão ser solucionados. Como Victor Hugo mesmo disse, "enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis". A ignorância e a miséria nunca deixarão o ser humano, por conta dessa "lei sombria / que faz que a noite chegue, apenas foge o dia". E, mesmo se um dia o deixarem, inútil é um adjetivo que jamais caberia a este livro, em hipótese alguma.