Sunkey 26/02/2022
APOLOGIA DE SÓCRATES - RESENHA
O objetivo deste texto é apresentar uma resenha da defesa de Sócrates na Apologia. No diálogo nos deparamos com a seguinte pergunta “Não te envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a tais ocupações, pelas quais agora está arriscado a morrer?” (28b) Estamos diante de um homem do qual se ouve que é um ateu, alguém que nega os deuses do povo, tão importantes para a manutenção da harmonia social. Esse homem, não só nega os deuses, como corrompe os jovens com suas ideias, disseminando seu ateísmo na mocidade. Suas artimanhas, dizem, é fazer prevalecer a razão mais fraca por meio de uma engenhosa oratória. Não parece, pois que um homem assim deve se envergonhar de sua atividade? Como pode, ainda, ser tão tolo, ao que parece, em fazer tudo isso sabendo que assim se arrisca à morte? Que bem tão grande é esse pelo qual vive que o faz assumir tamanho risco?
O que dizer do processo político que condena tal homem à morte? Está agindo a aristocracia da Polis para proteger os interesses do povo contra um homem ateu que se empenha em corromper os mancebos desse povo? O que dizer dos políticos, dos poetas e dos artífices que juntos se unem para dizer que esse homem, esse velho homem, merece a pena capital? Mas, como veremos, esse homem fez uma das mais lindas defesas que se pode ler, mostrou que aquela aristocracia política estava cometendo uma grave injustiça, que os poetas, políticos e artífices não eram realmente sábios e que toda a acusação contra ele não passava de calúnias. Esse homem, diante de um momento em que esperavam dele que se envergonhasse da atividade filosófica, demonstrou serenidade e provou a todos que, como filósofo, viveu sua vida pela verdade e para se manter fiel à missão que os deuses lhe confiaram.
É, pois, essa defesa da atividade do filósofo, uma apologia que subverte o significado da vergonha, que rompe com os valores aristocráticos e exalta a verdade como o bem maior a ser perseguido, ainda que isso custe a vida, que iremos acompanhar neste trabalho. Para tanto, este trabalho será composto das seguintes partes: (i) questões preliminares da defesa; (ii) investigação da origem das calúnias a Sócrates; (iii) respostas às acusações de Meleto; (iv) a serenidade de Sócrates diante da morte.
I. QUESTÕES PRELIMINARES DA DEFESA
Sócrates inicia o diálogo observando que não usará um discurso aprimorado. Com isso, ele deixa claro que ele não pretende fazer como os sofistas que intentavam persuadir pela oratória sem se preocuparem com a verdade do conteúdo de suas falas. O que importa, na visão socrática, é a verdade e não discursos floridos. Apesar dessa declaração inicial, é possível ver que a Apologia é um dos mais belos discursos já produzidos, as palavras escolhidas revelam uma mente genial e percebe-se que, apesar da modéstia que inicia o discurso e o compromisso pela verdade, essa verdade pode ser expressa sem se abrir mão da beleza das palavras.
Em seguida, Sócrates faz referência a acusações que foram levantadas contra ele. A primeira acusação consiste naqueles que dizem que Sócrates, tendo estudado vários assuntos, intencionalmente faz prevalecer a razão mais fraca por meio de suas artimanhas dialógicas. Outra acusação é a de que Sócrates negava a existência dos deuses. Uma terceira acusação é a de que Sócrates corrompia os mais jovens. Todas essas acusações eram falsas e escondiam o real propósito pelo qual o filósofo viveu. O ponto é que toda acusação falsa, isto é, toda calúnia não surge do nada. Alguma razão há, que foi distorcida, pela qual os inimigos de Sócrates inventaram tais mentiras. A razão desse falatório era a de que Sócrates realmente fazia algo incomum, algo que gerava falatório: ele possuía uma ocupação que gerava incômodo. Se uma pessoa calunia alguém é porque o indivíduo caluniado de alguma forma incomoda o caluniador. Caberia, pois, investigar a origem de tais acusações.
II. INVESTIGAÇÃO DA ORIGEM DAS CALÚNIAS A SÓCRATES
O que na ocupação de Sócrates tanto incomodava? Bem, ao ler o diálogo parece que a resposta está na missão que foi confiada ao filósofo e como ela feria o orgulho dos ditos sábios. Sócrates havia ouvido do oráculo do deus de Delfos que ele era o homem mais sábio. Aqui já temos algumas questões importantes a serem observadas: Sócrates acreditava na declaração proferida por uma revelação divina. Portanto, não se pode acusá-lo de ateísmo. Em segundo lugar, é comum que alguns digam que a filosofia grega surgiu por meio de um rompimento com o mito e com o teológico. Aqui vemos que essa interpretação é um engano, o mito e o divino não foram banidos pela filosofia, pelo contrário, a filosofia platônica recorre em muito a princípios extraídos da mitologia, bem como recorre a analogias míticas para exemplificar suas ideias. Ademais, o aspecto místico e divino continua no interior do pensamento platônico.
De todo modo, Sócrates creu na fala do oráculo como uma verdade, uma verdade que se autojustificava em certo sentido, uma verdade que estava acima de qualquer questionamento mesmo quando os fatos da experiência poderiam parecer contradizê-la. Esse era o caso, aquele que havia sido declarado o mais sábio não conseguia encontrar em si a razão que justificava tal afirmação divina. Como poderia ele ser mais sábio do que todos os sofistas, os poetas, os oradores e todos aqueles que compunham uma certa elite intelectual quando ele mesmo não se via de posse de nenhum conhecimento especial até então? No entanto, o oráculo não se engana. A fé de Sócrates na declaração divina era de que era uma impossibilidade categorial de que ela fosse falsa. E é confiando no caráter absoluto dessa verdade, dessa revelação, que o filósofo, mesmo diante de muitas razões para duvidar de sua sabedoria, decide assumir como sua missão compreender a significação do oráculo.
Sócrates, então, inicia uma missão que lembra a ideia de “falseamento”. Ele sai em busca, não de razões que confirmem a fala do oráculo, mas justamente que possam rebatê-la. Não o faz, no entanto, porque duvidava da declaração do deus de Delfos, mas porque acreditava que confrontando tal afirmação com os dados que poderiam contradizê-la, poderia permitir que seu real significado se desvelasse: “Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus” (21c). Foi assim que o nosso grande filósofo iniciou uma jornada que feriria o ego dos ditos sábios, fazendo surgir inimigos que fizeram uso da calúnia para lidar com uma ferida narcísica.
Sócrates foi ao encontro dos políticos. Ali declarou a eles que foi chamado de sábio quando não julgava ser enquanto aqueles políticos que se julgavam sábios, se a declaração do oráculo estivesse correta, deveriam não o ser. Os resultados disso foram dois. Para os políticos, tal fala se apresentou como uma afronta a seus egos, despertando neles ódio contra o filósofo. Para o filósofo, tal ocasião foi motivo de reflexão: “Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei.” (21e). Ora, pelo menos de posse de um saber estava Sócrates que faltava naqueles políticos, o saber de saber que nada se sabe.
O mesmo método foi repetido com outros que julgavam a si mesmo como sábios e o fim também se mostrou o mesmo. A mesma impressão de ódio por um orgulho ferido foi deixada nos que julgavam a si mesmo sábios e a mesma impressão de estar de posse de um saber que lhes faltava, o saber do próprio não-saber, foi deixada em Sócrates. Tudo isso gerava inimigos a Sócrates, tais atitudes deixavam mágoas pelo caminho e incitava calúnias e oposições. Mas como deve agir o homem de posse de uma missão divina quando a oposição se lhe apresenta? O homem incumbido de um dever ético, por maior razão por uma missão divina, precisa estar disposto a atender a tal dever e missão não importa as consequências negativas que isso gere. O serviço dos deuses possui importância máxima e não se pode recuar ainda que tal serviço faça do fiel servo de sua missão o mais odiado entre os homens.
Após os políticos, Sócrates foi ao encontro dos poetas. Poderiam aqueles que eram autores de tão belas tragédias e épicas narrativas serem inferiores a Sócrates em sabedoria? Para averiguar tal questão, nosso filósofo empenhou-se a fazer aos poetas uma série de questões, desse modo poderia ver, pelas respostas, se eles realmente tinham razões sólidas para dizer o que diziam ou se sua incapacidade de fornecer boas respostas revelaria sua inferioridade cultural. A verdade é que os poetas pareciam não saber falar do que haviam escrito. Era como se desconhecessem as próprias verdades sobre as quais haviam composto e era possível encontrar em seus leitores uma maior compreensão dessas verdades do que nos poetas. Ora, o que poderia explicar o fato de um poeta nada saber sobre a própria sabedoria expressa em sua poesia?
Pareceu a Sócrates que a explicação estava em que os poetas escreviam por dom ou inspiração divina do mesmo modo que o faziam os profetas ou adivinhos. Se uma pessoa escreve algo que revela profunda sabedoria, só poderá dizer que possui mérito caso isso seja resultado do empenho do seu pensamento, do esforço de suas capacidades de raciocínios. Mas se tal pessoa desconhece a sabedoria de sua obra, se não pode explicar por seu empenho o significado de suas composições e se elas são resultado de um dom natural ou de uma revelação sobrenatural, então não é a essa pessoa que pertence o mérito. Não se pode atribuir aos poetas, pois, a sabedoria expressa em suas composições.
Ademais, Sócrates verificou que os poetas, por produzirem sábias poesias, achavam-se sábios em outras áreas, quando na verdade não o eram. Isso lembra, por exemplo, hoje, quando um estudante de alguma especialização, acreditando ser muito inteligente por seus conhecimentos nessa área, crê ser inteligente também para opinar sobre todo e qualquer assunto, assuntos nos quais não é especialista. Ou até mesmo, podemos pensar naqueles que por terem tido um contato inicial com algum conhecimento novo creem estar de posse de um saber que todos os demais desconhecem e passa, então, a pensar a si mesmo como um grande intelectual a quem cabe iluminar os ignorantes. É curioso, pois, perceber, como ainda hoje acreditam ser sábios aqueles que não o são.
Após ter com os filósofos, Sócrates foi ter com os artífices. Não houve dúvidas de que eles conheciam bem suas artes, mas caíam no mesmo erro dos poetas. Por entenderem sua arte, julgavam saber sobre outros campos que desconheciam. Em toda essa busca, Sócrates constatou que havia pessoas que, em certos assuntos, sabiam mais do que ele. Nesses temas específicos, eram mais sábios do que Sócrates. Todavia, caso se perguntasse se tais pessoas estavam de posse do conhecimento da própria ignorância, tal conhecimento faltava a tais homens que julgavam a si mesmo sábios e, portanto, nesse ponto, Sócrates se mostrava mais sábio do que eles.
Parece, claro, aqui, algumas conclusões a que nos levam essa “investigação das razões das calúnias a Sócrates”. Caso olhemos para elas, vemos muitas coisas interessantes. Primeiro, que se pode explicar a origem dos falatórios no orgulho ferido dos poetas, políticos e artífices ou de todos aqueles que julgam a si mesmo como sábios. Em segundo lugar, tal investigação revela a fidelidade de Sócrates ao dever, à ética e à verdade na medida em que ele se entregou incondicionalmente à missão divina e confiou que ao oráculo era impossível mentir. Terceiro, essa investigação revelou qual é a verdadeira sabedoria, essa consiste, não em estar de posse de certos saberes que permita ocupar cargos ou certos ofícios, antes a sabedoria encontra-se na humildade intelectual.
III. RESPOSTAS ÀS ACUSAÇÕES DE MELETO
Após esclarecer a origem das calúnias a ele dirigidas, Sócrates passa a responder a duas acusações feitas por Meleto. Podemos considerar as seguintes acusações e suas respectivas respostas:
Primeira acusação: Sócrates é réu de corromper a mocidade.
Resposta: Sócrates responde mostrando que, para Meleto, todos na sociedade ateniense pareciam educar os jovens enquanto Sócrates era o único a pervertê-los. Ora, mas se isso é assim, parece que não há o que se preocupar. Se a mocidade está cercada de várias boas influências, e apenas uma má, então parece natural que prevaleçam as boas influências. Outra questão é que mesmo que Sócrates corrompesse os jovens não se podia dizer que o fazia voluntariamente, pois não faria sentido que fizesse mal aos de seu convívio por querer, se o fizesse estaria se arriscando a deles receber dano. Mas se o mal praticado por Sócrates é um erro involuntário, não faz sentido que ele seja condenado, bastaria que ele recebesse uma advertência que o tornasse consciente desse erro.
Segunda acusação: Sócrates é réu de não crer nos deuses do povo.
Resposta: Essa acusação consiste em dizer que Sócrates negava os deuses da sociedade, propondo divindades novas em seu lugar. No entanto, ela carrega uma ambiguidade. De um lado, ela poderia ser lida no sentido de que Sócrates é um ateu, de outro que ele cria em divindades diferentes daquelas do povo. Talvez os acusadores misturassem as duas calúnias a fim de criar boatos que pintassem uma imagem negativa de Sócrates como opositor da religião da sociedade. Meleto curiosamente insiste na tese de que Sócrates era completamente ateu. É como se pudesse escolher a forma mais escandalosa de calúnia, aquela que gera a maior polêmica e que afeta os ânimos do povo. Essa calúnia, no entanto, se mostrava evidentemente falsa. Sócrates viveu por uma missão divina conferida pelo oráculo. Ademais, o próprio Meleto sabia da crença de Sócrates nos “daimons”, espíritos tidos como filhos dos deuses. Ora, se alguém crê em seres que são filhos dos deuses, como pode não crer em deuses?
IV. A SERENIDADE DE SÓCRATES DIANTE DA MORTE
No entanto, se a condenação de Sócrates é resultado de difamações feitas por pessoas com o orgulho ferido, por que o filósofo se entrega à morte, por que aceita o julgamento da cidade, por que não foge? Sócrates foi um homem de princípios, entendia que sua vida poderia ser sacrificada em defesa da verdade, estava disposto a entregar-se à morte como um mártir. Ademais, ele não temia a morte porque sabia que as almas justas se unem ao divino no pós-morte. Isso é algo que aparece no Fédon. Embora possa parecer, por um recurso argumentativo, que Sócrates lida com a possibilidade de não haver uma vida no pós-morte, ele o faz para fins retóricos. É como alguém que admite uma possibilidade adotada por parte de seus ouvintes para mostrar que mesmo assumindo tais suposições pode se chegar às conclusões que se pretende argumentar a favor.
No Fédon, Sócrates deixa claro que entende a vida do filósofo como um exercício de preparação para a morte, quando, por fim, a alma poderá se unir aquilo em relação ao qual mais se assemelha. Desse modo, o sábio busca as verdades eternas, seu fim é contemplar as ideias perfeitas, é exercitar a parte racional de sua alma a fim de transcender os instintos e apetites. Portanto, a morte é para o filósofo uma libertação, quando sua alma pode se unir ao divino. O justo não precisa, pois, temer a morte pois a acolhe como uma amiga. Eis, porque, o filósofo encara a morte com serenidade, não busca fugir dela, pois sabe que um destino feliz o espera no porvir. Desse modo, é com alegria, e não com lamento, que Sócrates se encontra perante a morte.
Sócrates está velho, o exílio só significaria mais canseira, a vida feliz que o aguarda do outro lado é a melhor escolha. Mas se o justo pode se alegrar diante da morte, aqueles que matam o justo devem temer. A justiça nunca falha, triste há de ser o fim daqueles que matam um homem por ter sido sempre fiel a uma missão divina. Na verdade, o filósofo é funcionário da sociedade, Sócrates propõe que alguém como ele, deveria era ser sustentado pelo povo. Com grande ingratidão os atenienses retribuem a Sócrates o seu serviço de guiá-los à verdade. Se retribuem o mal com bem devem estar cientes que a retribuição divina aos seus atos virá: “Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente.” (39b) “Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo vos alcançará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes.” (39d).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aristocracia da Pólis cometeu uma grande injustiça, condenou à morte um homem que lhes ensinou a pensar. Sócrates não saía por aí ensinando um conjunto de verdades, sua atividade, ao contrário, consistia em fazer perguntas para que o próprio interlocutor encontrasse dentro de si as verdades interiores que toda alma carrega consigo. Ensinou que a humildade intelectual é a verdadeira sabedoria. Foi fiel por toda vida aos deveres éticos e nunca renunciou à sua missão divina. Manteve-se firme até a morte e morreu por aquilo que acreditava. Desafiou com coragem aqueles que se julgavam sábios, mas não o eram. E quando uma classe de políticos, poetas e artífices o condenou à morte, não fugiu à sua sina. Revelou a mentira das acusações, exaltou o dever do homem de ser fiel à sua missão, defendeu a atividade filosófica e mostrou, não só por palavras, mas por sua vida inteira, o que significa ser um verdadeiro filósofo.
Quando todos esperavam que ele demonstrasse vergonha, que ele fugisse à morte, que ele renunciasse às suas ideias, mostrou que a coragem é uma virtude que não pode faltar ao filósofo. Assim, ele deixou um exemplo para todos nós. Aprendemos com ele a importância da humildade, da fidelidade à verdade, do compromisso com a ética e do papel do filósofo em não abrir mão de seus princípios quando aqueles que estão no poder se levantam contra ele. Também aprendemos com ele a ver a morte como uma amiga, a encarar o morrer, não com medo, mas com serenidade. Ainda que não precisemos compartilhar da crença socrática de uma vida após a morte, podemos saber que encerraremos o ciclo da existência conscientes de termos vivido de forma justa e em busca da verdade.
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