Codinome 25/09/2018
Um pouco sobre "Todos os contos"
Um dos principais benefícios de se ler todos os contos de Clarice Lispector é poder ter um olhar sobre a trajetória de sua vida através da ordem dos contos, que são organizados cronologicamente por seu fã Benjamin Moser. Com Clarice isso funciona pois sua obra ficcional quase sempre teve ligação com experiências próprias e um eterno desassossego.
As próprias personagens são um reflexo através da idade. Nos primeiros contos há a presença de garotas e mulheres jovens; na seção “Primeiras histórias”, os relacionamentos entre a mulher e o homem são bastante presentes e marcados por uma conclusão de quebra e auto-destruição nesse mesmo relacionamento, muito provavelmente são problemas pelos quais a autora passou na época. Sendo que essa temática de relacionamentos que não se encaixam aparecerá ao longo de seus outros contos, o que revela uma maturidade já em seus primeiros trabalhos. Bem iniciais mesmo, por exemplo: o conto “História interrompida”, em que teria entre 19 e 20 anos a jovem Clarice quando escreveu.
Conforme a aproximação aos seus últimos anos de vida, vemos personagens mais velhas, algumas até bem velhas (incríveis 81 anos no conto “Ruído de passos”). E um texto cada vez mais marcado pelas preocupações com a morte: o tom confessional fica mais claro. Nesses contos finais é até comum ler frases dizendo que ela não quer morrer. Mesmo assim não se trata de autobiografia como um “Confissões”, de Santo Agostinho, ou uma carta íntima como “Carta ao pai”, de Kafka. São contos de altíssimo valor ficcional ao modo que ela sabia escrever: sem deixar de ser e colocar ela mesma.
Esse poder de narrativa, para mim, tem seu ponto máximo no livro (que torna-se uma seção de “Todos os contos”) “A via crucis do corpo”, o livro de contos da escritora que mais gostei. O poder inventivo dessas histórias desses contos em sua maioria curtos – que nem é o meu formato favorito em relação à Clarice – chama a atenção para a imaginação e a realidade. Tendo uma temática mais cruel e sexual. Foge bastante dos temas encontrados nos outros livros, revelando uma Lispector bem desacreditada da vida e das pessoas.
Essa realidade ficcional que encontramos em “Via crucis do corpo” se contrapõe, ao mesmo tempo em que se agrega, aos outros livros da coleção que possuem uma imersão maior no Eu em diferentes graus labirínticos. O livro “Onde estivestes de noite”, para mim, representa bem essa complexidade, aproximando-se do metafísico no conto de mesmo nome e que, na minha opinião novamente, Benjamin Moser também deveria citá-lo, em sua ótima introdução “Glamour e gramática”, nos contos abstratos que ele menciona.
Outro lado bom de ler um segmento total de um autor é ir compreendendo os temas que aparecem e reaparecem ao longo de sua prosa. Em Clarice contista, pude ver, como disse no início, relações que são difíceis de se acontecerem, que evolui (se é que é uma evolução) da mulher e do homem para as pessoas em geral; muitos momentos de choque de realidade, tanto para a personagem quanto para o leitor (até mesmo para Clarice), um exemplo é o lindo conto “A legião estrangeira” que vemos uma garota que se encontra com o amor num primeiro choque e um segundo susto num segundo choque; a ideia do estranho e do estrangeiro (para muitos, a mesma coisa) que pode ser saboreada apenas com o livro “Legião estrangeira” aos que querem fazer uma primeira viagem com os contos de Clarice; a presença de um Deus incerto; o amor pelos animais (são diversos os que aparecem nos contos) e pelas crianças: é incrível e uma das grandes oportunidades com esse livro de ver um sentimento tão bonito se tornar arte ou texto (chame do que quiser!).
Esses são alguns aspectos.
Deixo aqui meus agradecimentos a Moser, que se não fosse ele, seria muito mais difícil apreciar de forma íntegra a Clarice contista. Seus mais de 80 contos podem ser um grande marco em nossa trajetória literária.