Lucas 26/06/2019
A história brasileira do linchamento de direitos individuais: Quem não lê, consente
O Regime Militar brasileiro, que perdurou de 1964 até 1985, é um tema cercado por uma espécie de "mitologia": afinal de contas, vem se popularizando nos últimos tempos visões mais extremistas de certos fatos e quanto à ditadura não é diferente. "Eram vagabundos, mereciam apanhar!", "Na ditadura, a sociedade era mais segura" ou, o pior deles, "No Regime Militar, não havia corrupção" são apenas alguns brados que elementos mais exaltados utilizam na realidade atual para se defenderem ou criticarem pensamentos políticos antagônicos. É justo que se diga, todavia, que esta tendência de negação de verdades antes absolutas não se restringe apenas aos quase 21 anos que os militares comandaram o país. É uma corrente ampla, que vai desde a absurdos como o de que não é a Terra que gira em torno do sol ou de que o nazismo/fascismo eram regimes de esquerda.
Brasil: Nunca Mais foi um projeto elaborado pela Arquidiocese de São Paulo, que era coordenada por Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), Cardeal e Arcebispo de São Paulo, que juntamente com outros líderes religiosos, como o rabino Henry Sobel (1944-) e o pastor presbiteriano Jaime Wright (1927-1999), agiram na clandestinidade entre 1979 e 1985 para reunir informações de mais de 700 processos do Superior Tribunal Militar, que abrigava todos os inquéritos e denúncias contra a "ordem". Para dar uma maior substância à investigação, todos os processos estudados já tinham sido finalizados, desprezando-se assim ações que ainda tramitavam pela Justiça Militar.
O projeto acabou gerando um livro-reportagem homônimo, e ambos (livro e pesquisa) corresponderam ao primeiro esforço coordenado da sociedade na busca de esclarecimentos a respeito do regime e sua estrutura de repressão. Atualmente, grande parte deste material processual (mais de um milhão de páginas) está digitalizado e pode ser acessado livremente pela Web. Por ter sido lançado em 1985, no limiar do novo regime democrático, a obra assumiu um caráter de vanguarda e de uma importância jamais superada posteriormente, já que se dedicou quase que exclusivamente ao clareamento da obscuridade das prisões que o regime executava em nome da já mencionada "ordem", sem, todavia, esquecer-se de mencionar aspectos históricos que conduziram o país a esse colapso democrático.
A tortura adquire, nesse sentido, um papel central na narrativa. São dezenas de depoimentos de pessoas diferentes proferidos na esfera militar (o que traz autenticidade aos mesmos, portanto) que tratam das mais inacreditáveis formas de tortura, que vão desde humilhações públicas (espancamentos) até a situações constrangedoras e absurdas, como choques elétricos tomados a partir do pênis ou da vagina. O livro esclarece, também, que boa parte dessas "detenções" ocorria a partir de argumentos frágeis ou de "denúncias anônimas", expondo situações reais amparadas por depoimentos ou por notas que indicam dentro dos arquivos do Projeto Brasil: Nunca Mais de onde tais comprovações foram retiradas.
Com o intuito de se tornar quase um resumo didático a respeito de toda essa atmosfera de medo, a obra se divide em 6 partes: Castigo cruel, desumano e degradante, o sistema repressivo, repressão contra tudo e contra todos, subversão do direito, regime marcado por marcas da tortura e os limites extremos da tortura. Como os títulos sugerem, a primeira e as duas últimas partes são as mais contundentes no que se refere à tortura de presos políticos. São inúmeros relatos estarrecedores de agressões físicas, abusos sexuais, humilhações, etc., que se abateram sob cidadãos comuns, a maioria deles sem envolvimento político direto com a oposição do regime. A obra deixa claro este seu apego ao discernimento destas violências não só por esses depoimentos, como também por demonstrar todo um aparato técnico, científico e até acadêmico que os departamentos de investigação usavam com o intuito de extrair à força qualquer informação que lhe pudesse ser útil, em "depoimentos" feitos às escondidas, na maioria das vezes na calada da noite, sem presença de advogado algum ou de qualquer outra legalidade tão primordial a qualquer processo jurídico.
Mas nem apenas de torturas e relatos que dobram o estômago vive a obra: o contexto histórico que conduz ao golpe militar de 1964, desde a criação da República em 1889, passando por Getúlio Vargas até o governo de João Goulart são resumidos de maneira bem rápida e ao mesmo tempo informativa. Os primeiros atos institucionais (promulgados por Humberto Castelo Branco e posteriormente por Artur da Costa e Silva, os dois primeiros marechais-presidentes) também são conceituados, incluindo o famoso AI-5, de 1968, que institucionalizou a tortura como prática comum e correspondeu ao grande aparato de leis adotado pelo regime no sufocamento da oposição. Neste sentido, é válido o destaque à parte da subversão do direito, caracterizado por inquéritos que viravam denúncias, testemunhas de defesa que desapareciam ou de acusação que surgiam do nada, corrupção para troca de informações, advogados sem acesso a clientes, coação de testemunhas e várias outras situações que foram institucionalizadas e que adquiriram um tom folclórico, tamanho o ódio contra quem pensava diferente. Aqui cabem também temas polêmicos, como o apoio que a Igreja Católica forneceu ao golpe e à enumeração e descrição das atividades de guerrilha, que adquirem um caráter justificatório e ao mesmo tempo lamentável.
Brasil: Nunca Mais é um livro que traz um impacto indelével a quem o lê, até mesmo ao mais cético dos leitores ou àquele que pensa que o tema Ditadura Militar já se esgotou ou se perdeu em discussões rasas partidárias que levam em conta o momento atual. A atmosfera que cerca a atualidade, todavia, não favorece o aparecimento de um regime militar (algo que muitos cidadãos até desejam, o que deve ser um reflexo de sua falta de instrução): as instituições democráticas não correm risco aparente. No entanto, dois pontos precisam ser destacados: 1) as democracias do século XXI não se esfarelam por meio de tanques nas ruas, bombas e aspectos cinematográficos. É o que defendem e comprovam os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt na obra Como As Democracias Morrem, lançada no Brasil pela Editora Zahar no ano passado. Segundo eles, líderes com posturas antidemocráticas usam da própria democracia para ascender ao poder, causando certo perigo às liberdades individuais no longo prazo e 2) pela primeira vez desde 1985 há no país um governo que muito usa de nomes militares para o comando de áreas estratégicas da nação e do próprio funcionamento do Estado. Inédito nesse período também são as propensas ameaças ao direito de expressão, com jornalistas subitamente desempregados ou ignorados por meio de justificativas cínicas, que não ilustram a efetiva realidade. Estes pontos precisam ser considerados e refletidos por quem se considera um defensor da democracia.
Se o Brasil fosse um país que levasse a sério a educação, Brasil: Nunca Mais seria uma obra a ser distribuída gratuitamente nas escolas, para a difusão da gravidade daqueles anos, tal como faz a Alemanha, que faz questão de lembrar do nazismo aos jovens não para se depreciar como nação, mas para ensinar a eles que truculência, intransigência, violência e preconceito jamais serão substantivos que formarão um país verdadeiramente pacífico. A Ditadura Militar foi um período nefasto na história brasileira e que precisa ser lembrado não para louvores (o período do Milagre Econômico do início da década de 70 coincidiu com as maiores ocorrências de torturas), nem para endeusamento de determinado setor político, mas para aprendizado; a manutenção da democracia, reconquistada a um custo elevado de mortos e desaparecidos, deve ser permanentemente vigiada por todos os cidadãos que se dizem de bem.
É quase um dever: todo brasileiro que saiba ler deveria conhecer as linhas de Brasil: Nunca Mais. Ele é contundente, breve, significativo e facílimo de ser entendido e compreendido. Mais que um ato de informação, conhecer a história desse período no Brasil é um verdadeiro ato de civismo e cidadania; é também uma forma de lembrar que a liberdade civil, de ir e vir, de pensamento ou de expressão, é algo que jamais deve ser restringida. É uma forma de o leitor afirmar a si mesmo e a todos que o rodeiam que o poder dos livros supera o das armas e que truculência e violência devem sucumbir à razão e ao saber.