Ale 12/03/2017
A cura grega
A história retrata a tragédia de Filoctetes, arqueiro deixado em uma ilha deserta por seus companheiros em razão de ter adquirido uma "doença", uma perna fétida e pustulenta acompanhada de gritos lacerantes. O livro em si trata desde a chegada de Odisseu e Neoptólemo na lha até a partida.
O arqueiro deixado por sua condição, Filoctetes, dispensado pelos atridas, jogado em uma ilha por não ser suportável acaba sendo indispensável. O feio, o sujo, a doença acaba sendo indispensável. Brilhante, se me perguntarem. Ora, é natural que despojemos aquilo que nos é nauseante, insuportável, que não vemos utilidade, mas e se isto fizer parte da equação final? Após nossos protestos e nossa aceitação, como fazer o rejeitado ajudar? Fazê-lo passar por processo semelhante? Se for Filoctetes, só alguém que consiga ver nele um homem e não o respingo de um vaticínio.
Ao reprimir uma ideia, esta não deixa de existir, como Filoctetes, mas aumenta e aumenta e torna-se perigosa. A repressão já é evidência que ela é perigosa, mas ao trancá-la ela não fica melhor. Para acessá-la, pode-se utilizar os ardis, mas só olhando-a de frente e aceitando-a como parte de si é que ela se mostrará à luz, inofensiva. Até podemos tentar, como Odisseu o fez, tomar o arco e deixar aquele que o carrega: pegar só aquilo que é bom e deixar o podre para trás, mas isso não é possível, porque o bom e o podre andam juntos e são indissociáveis, como Filoctetes e seu arco. Só Neoptólemo, tratando-o como igual, que pode entrar na alma tão protegida de impassividade de Filoctetes.
Ele, claro, é extremamente inflexível. É diametralmente contrário a Odisseu, que se molda a cada situação. Filoctetes prefere morrer de fome numa ilha deserta, mitigado por uma doença terrível, recusando a cura e a vida heroica, para defender suas convicções. São assim as ideias reprimidas, tão difíceis de trazer à luz, farão de tudo para ficar lá, pois assim é mais confortável. Assim o é para Filoctetes, pois teria que se deparar novamente com Agamenon e os aqueus e enfrentar essa situação de frente. Muito difícil. Acredito sim que haja o ponto do conforto em não renunciar à mágoa, pois para isso é preciso muita coragem. Aquiles viveu algo parecido, e só algo muito forte foi capaz de lhe convencer, assim como a Filoctetes.
Falando nisso, a mudança do Aquileu é surpreendente. No começo, obedecia a, como se fosse, uma obrigação civil, uma obrigação de obediência a Odisseu, que é uma força oposta a Filoctetes. Este, em contato com o filho de Aquiles, aplica-lhe força contrária, obrigando-o a tomar uma decisão moral, uma decisão que representa qual caminho moral ele tomará dali para frente. Tomando partido de ambos, diria eu, tomou Filoctetes como herói e homem como os demais, sem olvidar o vaticínio troiano, convencendo-lhe a ir combater e saquear Ílion, mas ouvindo sua tragédia e dando-lhe créditos. Um verdadeiro magistrado.
Trata-se de livro em forma de teatro, podendo incomodar aqueles que não se identificam com essa forma. Não é uma leitura das mais fáceis (pelo menos nesta edição), mas é bastante curta, contabilizando 1470 versos. Para os apaixonados pela guerra de Troia, livro mais que recomendado.