Stella F.. 25/07/2023
Invisibilidade e ilusão de beleza
O olho mais azul
Toni Morrison - 2019 / 201 páginas - Companhia das Letras
Não conhecia a escrita de Toni Morrison, e resolvi começar por esse livro triste, sensível, pungente e cheio de aprendizados sobre racismo, violência doméstica, estupro, mito da beleza, diferenças entre negros e pardos, invisibilidade, humilhação, diferença social, mas também amizade.
O livro é dividido em quatros partes que seguem as estações do ano.
Logo conhecemos as irmãs Claudia (narradora), Frieda e Pecola, que vai ser criada junto à suas amigas após o pai colocar fogo em sua casa e sua mãe ser expulsa da própria casa. Somos apresentados aos pais de Pecola (Pauline e Cholly Breedlove), em narrativas intercaladas que vão dar conta de nos apresentar sua história pregressa e de como as coisas foram piorando na vida deles, apesar de a princípio ter um amor imenso, e chegar ao ápice com violência doméstica com a mulher e com a filha. Pauline tinha um problema no pé, que a diferenciava das outras mulheres, que fez toda a diferença na sua vida, de como ela era vista, tratada e de como poderia viver, mas não impediu que chamasse a atenção de Cholly. Este era órfão e foi criado com muito amor por uma tia, mas tinha o ressentimento de ter sido abandonado pela mãe e não ter conhecido o pai. Cholly foi preso e Pauline ficou na casa de sua empregadora.
Pecola, segundo a própria mãe, nasceu muito feia. Todos a acham feia e ela sofre muito bullying na escola dos próprios negros. "Era o desprezo que sentiam pela própria negritude que fez irromper o primeiro insulto." (posição 772) “Moravam ali por serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios." (posição 430) Ela tem uma imagem de beleza que vem das bonecas da infância de meninas brancas, bonecas brancas de olhos azuis e da pequena atriz Shirley Temple. Ela deseja com todas as suas forças ter olhos azuis. Acredita que com isso, sua vida poderia mudar, não ser tão sofrida e triste.
A mãe de Pecola era empregada doméstica na casa dos Fisher e em uma ocasião, Pecola e suas amigas precisavam falar urgentemente com Pauline. Vão no seu trabalho e lá esbarram em algo na cozinha e são repreendidas. A menina que era cuidada por ela chega à cozinha e fica assustada com a três. Pergunta a Polly (Sra. Breedlove) quem são e ela responde que não são ninguém. Aqui fica claro que Pauline sente-se inferior, invisibiliza os seus, ao fingir não saber quem são. Aqui podemos recorrer a um trecho onde a autora nos fala das pequenas diferenças entre pardos, mulatos e pretos, de maneira primorosa. Ela faz uma análise das garotas pardas que se sentem mais importantes, menos pretas e, portanto, podem ter mais cultura, formação, mas no fundo aprendem como agradar e trabalhar para os brancos, fazendo economia doméstica, estudando etiquetas. "Numa palavra, como se livrar da catinga." (posição 1001)
A vida dura do casal Pauline e Cholly fez com que o amor deles não sobrevivesse. Seus traumas os transformaram em pessoas agressivas e o amor pelos filhos foi se transformando em obrigação e cruz. Até chegar ao ápice do abuso que Pecola sofreu. Ele bebia muito, não tinha mais vontade de viver, e o casal vivia se estapeando. Pecola tinha dores de estômago e seu irmão sumia de casa nessas ocasiões. Até que em um dia de bebedeira Cholly viu a filha lavando louça e sem perceber, não sabia bem por que a atacou, após ela fazer um movimento igual ao da mãe quando ele a conheceu. Ela desmaiou e Pauline chegou. Ele não sabia amar a filha porque não tinha tido amor dos pais.
Logo depois conhecemos a história de um charlatão que só engana as pessoas e Pecola vai recorrer a ele. As pessoas o procuravam com pedidos desesperados. "Abriu e viu uma menina que ele não conhecia. Devia ter uns 12 anos e era deploravelmente feia." (posição 2152) Tinha uma barriguinha um pouco saliente. "Aquele era o pedido mais fantástico e, ao mesmo tempo, mais lógico que já lhe tinham feito. Ali estava uma menina feia pedindo beleza. Uma onda de amor e compreensão o invadiu, logo substituída por raiva. Raiva de não poder ajudá-la." (posição 2169) E ela passará a acreditar que tem olhos azuis, mas ninguém os verá. Pecola fica completamente desnorteada com o bebê, o estupro, a vontade de ter olhos azuis, e caminha para a loucura. E ao final a narradora (sua amiga Claudia) vai nos falar da feiura e do sofrimento de Pecola, e como isso de algum modo era compensatório para elas, mesmo elas tendo amor pela amiga. "Éramos tão bonitos quando montávamos na sua feiura. A simplicidade dela nos condecorava, sua culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. [..] E ela nos deixou fazer isso e, portanto, mereceu nosso desprezo." (posição 2558)
Muito sofrimento em uma escrita primorosa e instigante. Ainda temos um ótimo posfácio escrito pela autora onde vai nos falar de sua escrita, de suas escolhas no enredo para atrair a atenção do leitor. "Se o leitor penetrar na conspiração que as palavras de abertura anunciam, pode-se entender o livro como se começasse com o encerramento: uma especulação sobre a ruptura da "natureza" como uma ruptura social, com trágicas consequências individuais, em que o leitor, na qualidade de integrante da população do texto, está implicado. " (posição 2649)
Foi uma excelente experiência e recomendo muito a leitura!