Pablo Paz 14/03/2024
O inferno é a ausência de Deus
O inferno é a ausência de Deus
Para mim, leitor comum, esse autor é uma mistura de Julio Verne com Machado de Assis. A riqueza e a clareza na exposição, mais do que explicação, de teorias abstratas com caracterizações precisas de Verne; mais a elegância da escrita e a verve filosófica do narrador distante e resignado de Machado. São oito contos, todos publicados em revistas SCI-FI e agora reunidos em livro.
O mais famoso deles, que leva o título da obra, trata da estória duma linguista, contratada pelo Estado para aprender a língua de um povo alienígena que aporta na Terra. Nessa troca de aprendizagens, os alienígenas, ao aprenderem a nossa língua, também aprendem a pensar e a sentir como nós, humanos, a ponto de um deles afeiçoar-se da linguista e do arqueólogo. A linguista, ao aprender a linguagem deles, também começa a pensar e a ver o mundo como eles; e uma característica da linguagem deles é conseguir ver o próprio futuro, através de sonhos e/ou déjà-vus. Inicialmente, ela acha que está tendo surtos psicóticos, devido ao excesso de trabalho, porém todas essas experiências oníricas são passagens que ela viverá no futuro, incluso tragédias. Numa HQ de super-heróis maniqueístas como os da Marvel ou da DC, isto seria uma espécie de superpoder, mas aqui é só uma nova língua que ela aprendeu com os alienígenas: é assim que eles 'falam' e 'pensam' e apreendem o mundo: vendo o futuro, isto é, a 'história da sua [própria] vida', como sugere o título do conto.
Resumindo assim, parece simples, e até chato, mas a forma como ele narra e explica a relação de distanciamento, aproximação e alteridade entre o alienígena e a linguista é digna de um bom antropólogo. Até virou um filme lindíssimo chamado "A Chegada", lançado em 2016. Também há outro conto chamado 'O inferno é a ausência de Deus' cuja temática é bem conhecida para quem gosta de filosofia e religião: não há como não reconhecer o filósofo cristão Santo Agostinho e o seu famoso 'o mau é a ausência de Deus'. (Para quem não sabe, Santo Agostinho é um autor apreciado e respeitado desde há muito tempo na China.)
Na maioria dos contos, talvez por sua origem chinesa (tendo uma língua tonal como língua materna) e formação em ciências da computação, o autor demonstra certo fascínio pela linguagem - humana, científica, filosófica, religiosa, matemática, computacional. Cada conto é uma obra-prima em si mesmo. Ficção científica de primeira e sem clichês. Até comprei o segundo livro dele - 'Expiração' - lançado pela mesma editora.
Uma curiosidade que notei nas estatísticas do Skoob: é o primeiro livro de SCI-FI que tem mais leitores do sexo feminino do que do masculino. Acho que é porque o livro trata de temas 'duros', ou 'masculinos', com uma leveza 'feminina' na forma de narrar.