Retipatia 24/10/2018
Uma Fisheye que queria ser Polaroid...
A delicadeza do olhar de quem descobre que pode enxergar bem mais do que os olhos permitem ver; a sutileza de perceber que as imperfeições fazem parte da beleza de cada um. Uma história com uma pitada de um dos contos de fadas mais amados. Esse é Fisheye...
Ravena Sombra é popular, digna do título de Queen Bee das garotas de sua escola, em uma versão brasileira da muito conhecida Regina George do filme Meninas Malvadas. A protagonista encabeça o poderoso trio dos Erres, já que as amigas e fiéis escudeiras se chamam Raquel e Rebeca. Seu lado nerd, fã de rock dos anos 60, de Star Wars e que adora fotografar com sua antiga Polaroid chamada Dear Prudence, esse, é mantido à sete chaves sob várias camadas de rímel e delineador.
Tudo em sua vida precisa estar, ser perfeito. Da aparência às notas em sala de aula, do comportamento ao namoro com o garoto dos sonhos. E, de fato, apesar de a família de Ravena estar longe de qualquer ideal de perfeição, ou melhor, de qualquer ideia de estabilidade, com a irmã morando em outra cidade e sendo considerada pela família como a ovelha negra, com os casos extraconjugais do pai em evidência e a indiferença da mãe, realmente, tudo o que importa para ela, é a aparência. É a certeza de que tudo que pode ser controlado, tudo que está ao seu alcance, funciona da maneira como deveria, ou como a sociedade lhe diz que deveria ser.
No seu último ano de escola, o foco está no vestibular, ingressar em um curso que tem a aprovação dos pais é uma das suas metas e, sem dúvidas, ela se dedica ao máximo, tanto que suas noites em baladas são cada dia mais escassas. Mas uma noite de folga, proposta de seu amigo Mick, traz acontecimentos estranhos e as coisas não saem como o planejado. Depois de alguns exames, a descoberta: retinose pigmentar. Ravena está perdendo sua visão a cada dia que passa e, agora, todos os seus planos e perspectivas de vida são questionados.
A história de Fisheye pode parecer seguir um script, daqueles que temos em livros e filmes que abordam a descoberta de algo impactante, geralmente, de uma doença, já que é exatamente essa a proposta. Imaginamos que a notícia da doença chegará, seguida da desestabilização, da reviravolta, e então, a aceitação, o amadurecer, o desabrochar. Mas, se for assim, o que é que realmente temos fora do padrão, já que, o elemento marcante da história, que é a fase de descoberta da doença já é jogada ao leitor logo na sinopse? O que vem depois, como a história se mantém sem um alicerce de descoberta pronto a ser revelado?
Talvez esse seja o aspecto mais prazeroso e sutil da leitura de Fisheye. As cartas foram colocadas na mesa, as apostas foram feitas e não precisa ser nenhum vidente para saber o rumo em que elas seguem, mas, a questão é, a narrativa te faz querer passar por cada um desses detalhes, por cada percalço, por cada dor e sentimento novo, por cada perda e descoberta. Cada único nascer do sol, cada pessoa que rodeia a protagonista como satélites naturais a orbitar um planeta, uns dependendo dos outros para subsistir. Queremos orbitar ao redor de Ravena e viver com ela cada minuto de sua vida, seja ele prazeroso ou doloroso, triste ou alegre.
Ravena é como um planeta prestes a sucumbir, com seus satélites totalmente atrapalhados, com órbitas invertidas, alguns desaparecidos e outros, novos e ainda sem lugar definido. Está prestes a sair do prumo, mas também, prestes a criar seu próprio trajeto interestelar. E viramos espectadores dessa colisão de astros que surge em cada página.
É assim que ela passa pela descoberta de sua doença e pela aceitação de sua nova condição como deficiente físico. Ela rui, colide bem mais do que com meros asteroides e satélites, e instaura o caos em todos os cantos pelos quais percorre diariamente. E é então que ela descobre, na beleza das coisas perdidas, das esquecidas, entre um clique e outro de Dear Prudence, nas músicas que ouve a banda de Daniel tocar, nas conversas redescobertas com seu pai, no lado que nunca conheceu da irmã, nas dores e dramas que seu seu amigo Mick vive... em tudo isso, nas amizades desfeitas, na imagem borrada no espelho, nas músicas antigas, nos planos desfeitos e naqueles que surgiram... é através de tudo isso que ela descobre que a verdade não é menos verdadeira quando silenciada, que ser belo não significa ser perfeito e que abraçar suas peculiaridades é a melhor maneira de se amar.
Talvez possa soar clichê e, sem dúvidas, a vida é feita de muitos clichês, mas o que Fisheye nos dá, sob a perspectiva de uma câmera e do olhar que começa a se fechar para captar os movimentos ao seu redor, é justamente a mensagem de que o crescimento, a dor que o gera, é que traz a felicidade ao fim da batalha de cada dia. É descobrir o verdadeiro significado de amizade, de amor ao próximo, de amor próprio, de desejo, de sanidade, de perda, de companheirismo, de família e do amor romântico. É livrar-se de pré-conceitos e preconceitos tão arraigados que saem destruindo o caminho quando são arrancados, mas deixam o alívio característico de retirar um espinho da pele.
É como se Ravena, no meio dos estudos para o vestibular, fizesse um grande resumo de tudo que precisa saber para a prova, listou cada um deles e, ao fim, percebeu que boa parte do que estava lá, não importa de verdade. É apenas o que o roteiro de estudos dispunha como necessário, mas, não necessariamente, o que ela precisava levar para a vida.
Foram necessários vários cliques e registros para mostrar que ver o que queremos ao nosso redor depende apenas da maneira como olhamos. Como um caleidoscópio, Ravena, a Fisheye, rearranja os fragmentos de sua vida em uma bela disposição para mostrar que o que importa é o trajeto percorrido nos clichês que a vida traz, e, especialmente, que ver além do que os olhos podem ver, é conseguir enxergar a real beleza que existe nos momentos e nas pessoas.
Com uma narrativa cativante e personagens bem elaborados (é impossível ler e não se apaixonar por, pelo menos, meia dúzia deles, Daniel que o diga...), Fisheye é uma leitura que emociona, que encanta, que traz uma pitada de contos de fadas à realidade bruta, que traz humor e descontração com suas referências geeks, que mostra a proximidade entre amizade e amor e, acima de tudo, mostra que a real beleza, a que importa na vida, é aquela que é possível captar para além do que se consegue ver.
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