Gerson 10/01/2024
"Os personagens destas páginas não são homens."
Esse não foi o primeiro livro que li sobre alguém que sobreviveu aos campos de concentração nazistas durante a segunda guerra mundial (O tatuador de Auschwitz e Os fornos de Hitler foram minhas leituras prévias), mas "É isto um homem?", do judeu italiano Primo Levi ? sujeitado a trabalhos forçados por pouco mais de um ano ?, distingue-se por determinadas particularidades. Eis a seguir algumas delas:
1. Primo Levi enfatiza, em diversas passagens, que as condições degradantes impostas aos aprisionados (escravidão, fome crônica, doenças, frio intenso, roupas esfarrapadas, separação de famílias logo no desembarque, vigilância constante, abuso de autoridade, falta de descanso, medo de ser selecionado para a câmara de gás, dentre outras) fizeram com que eles fossem desumanizados:
Pág.33: "Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento ? pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte..."
Pág. 60: "O instante no qual, ao despertar, retomamos consciência da realidade, é como uma pontada dolorosa. Isso, porém, raras vezes nos acontece, e os nossos sonhos não duram. Somos apenas uns animais cansados."
Pág.180: "Os personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade ficou sufocada, ou eles mesmos a sufocaram, sob a ofensa padecida ou inflingida a outros."
2. O desassossego e o atordoamento provocados pela dificuldade de compreender e de ser compreendido em meio a multiplicidade de línguas europeias. (Não me lembro dessa especificidade, que não é desimportante, nos outros dois livros citados anteriormente):
Pág.50-51: "Aqui, a confusão das línguas é um elemento constante da nossa maneira de viver; a gente fica no meio de uma perpétua babel, na qual todos berram ordens e ameaças em línguas nunca antes ouvidas, e ai de quem não entende logo o sentido. Aqui ninguém tem tempo, ninguém tem paciência, ninguém te dá ouvidos; nós, os recém-chegados, instintivamente nos juntamos nos cantos contra as paredes, como um rebanho de ovelhas, para sentirmos as costas materialmente protegidas."
Pág. 245: Lakmaker, na cama de cima do meu beliche, era um miserável destroço humano. [...] Só falava holandês; nenhum de nós o entendia."
3. Como consequência das grandes atribulações das quais os cativos padeciam, pensar num futuro próximo tinha se tornado impossível para eles:
Pág.171: "'Ao mudar, muda-se para pior" ? era um dos lemas do Campo. E, em termos mais gerais, a experiência já nos demonstrara mil vezes a inutilidade de qualquer previsão: para quer atormentar-se tentando prever o futuro, se nenhuma ação, nenhuma palavra nossa, poderia alterá-lo em nada? Já éramos velhos Häftlinge; nossa sabedoria estava em 'não tentar compreender, não imaginar o futuro, não atormentar-se pensando como e quando tudo isso acabaria, não fazer perguntas nem aos outros nem a nós mesmos."
Pág.172-173: "Para os homens vivos, as unidades de tempo sempre têm um valor, tanto maior quanto maiores são os recursos interiores de quem as percorre, mas, para nós, horas, dias, meses fluíam lentos do futuro para o passado, sempre lentos demais, matéria vil e supérflua de que tratávamos de nos livrar depressa. Acabara o tempo no qual os dias seguiam-se ativos, preciosos e irreparáveis; agora o futuro estava à nossa frente cinzento e informe como uma barreira instransponível. Para nós, a história tinha parado."
Com uma escrita agoniante e melancólica, Primo Levi, em "É isto um homem?", retratou de maneira ímpar a lógica industrial nazista de extermínio enquanto "aniquilação do homem". Leitura Obrigatória.