Pedro 02/08/2021
Em "é isto um homem?", Primo Levi nos relata a sua experiência no Campo de Concentração (KZ) de Auschwitz-Birkenau.
Desde a sua chegada, Levi - um jovem químico da Itália - aprende paulatinamente as normas escritas e não-escritas do Campo: sempre se deve tirar o chapéu para saudar um oficial da SS, os sábado eram reservados para a raspagem obrigatória do cabelo e barbearia, perder a sua própria camisa era considedarada uma transgressão, ninguém deveria pegar mais do que a porção diária de 1 L de sopa, etc ...
Essa sensação de alerta constante complementava (e aprofundava) a rotina estenuante de trabalho braçal, que se extendia além da capacidade que julgamos ser humanamente possível.
E é aqui que mora a chave da obra: o Campo constitui uma ferramenta que extirpa seus prisioneiros (Häftlinge) de toda e qualquer autonomia. Quando bem-sucedido, não se sentem mais importante do que o carvão que se carrega ou da estúpida lama que se deve enxovar.
Em meio a meticulosidade das normais alemães, os prisioneiros eram constantemente surrados, punidos e, por vezes, enforcados publicamente se não seguissem à risca o impiedoso estilo de vida imposto, renegado à repetição do trabalho forçado, adoecimento, fome e frio.
Como resultado, as normas e morais convencionalmente aceitas são abandonadas: entre os próprios prisioneiros, roubo, tráfico de itens, violência e mesquinhez tomam conta da população, que se agarra a qualquer meio para sobreviver. A todo momento, inclusive durante o sono, era preciso estar atento aos seus itens pessoais e procurando possíveis vantagens que lhe permitissem sobreviver. Observamos o florescimento de um mercado negro perto de um dos Blocos, nos quais as cotações entre artigos simples varia dia a dia, sendo muitas vezes pago em rações de pão.
Em meio a isso, Levi levanta uma questão interessante: Será que podemos realmente julgar com nossos padrões as atitudes de pessoas forçadas a condições tão degradantes?
Para mim, entretanto, a verdade é muito mais complexa: pelas palavras do autor podemos vislumbrar como o Campo impõe suas próprias normas de Mem ou Mau, sua própria linguagem e seu próprio entendimento de vida, que, por sua vez, não se preocupa mais com o amanhã.
Isso porque o frio, a dor, a fome, o cansaço, a aniquilição final já estão aqui - no presente - e não sabemos se iremos durar até o próximo dia.
Com o fim próximo da guerra, as condições de Levi e os demais prisioneiros melhoram gradualmente, mas ainda em um período cheio de dificuldades, ainda que menos pior. É aqui que observamos a retomada da dimensão humano do autor. Até então, vivendo no limiar das condições que o corpo é capaz de aguentar, agora se podia finalmente voltar a sonhar, sentir (dor ou alegria) e raciocinar. A condição de máquina a qual se havia acostumado enfim estava lentamente sendo abandonado.
Com a chegada dos russos e a libertação, Levi retoma a vida pós-Campo, começando a escrever essa obra ainda em 45.
Assim, respondendo à pergunta do título "é isto um homem?", para mim a resposta é clara:
O Campo consegue reduzir a condição humana até seu aspecto mais básico e deplorável. Posteriormente, vemos um início na trajetória que leva à desmaquinificação do homem. Mesmo nesse caminho final, entretanto, muitos não sobrevivem, acrescendo às estatísticas mais um número, daquele ser que há muito já não se sabia mais o que era.
por Pedro Henrique Portugal