Jéssica 22/02/2023
Olho de um, alma de outro
Entre becos-labirintos se constrói a narrativa de Conceição Evaristo, imbuída em sensibilidade e vontade. Nasce da memória viva da vida na favela, das suas gentes e suas misérias, contada por Maria-Nova, que é uma exímia colecionadora de histórias, e que anseia por ser escritora e poder finalmente eternizar aqueles rostos e corpos favelados que sustentam o cotidiano no local.
A precarização da vida na favela realça os recortes de gênero, raça e classe tão presentes nas figuras das personagens, que transitam entre a dor de viver e a dor de morrer, e se enfezam e amedrontam ao saber que mesmo o próprio barraco não lhes pertence. Que o próprio pedaço de terra onde ele se ergue pertence a outros, e por meio de políticas de desfavelamento, são expulsos para que possam, em outro lugar, viver sua miséria.
Quando o rio de Tio Totó levava tudo, restou as angústias de Ditinha, de Cidinha-Cidoca, de Jorge Balalaika, ficou o rosto que não sorri de Mão Joana e o sorrir para dentro de Maria-Velha, e a própria melancolia de Maria-Nova, que na senzala-favela via o buraco do mundo. Também o altruísmo de Bondade, e a indignação de Negro Alírio, que buscava a força na rebelião dos trabalhadores; mas cabiam todos, todos, na imensidão do coração de Vó Rita ? que dormia embolada com a Outra.
Corpos subalternizados que encontram na própria comunidade uma beira, uma lasca de resistência, e que choram, que riem, que festejam, que enlouquecem, que narram, que morrem e nascem. Nesse fazer da vida, percorrendo os becos, sobram e sangram os rastros das memórias.