@le.leituras 03/10/2024Becky Chambers nos apresenta uma visão otimista do espaço em A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil. O livro, uma space opera focada em personagens, foge dos clichês tradicionais de ficção científica ao centrar sua trama nas interações e laços emocionais entre uma tripulação diversificada. O livro é o primeiro da série Wayfarers e combina uma atmosfera de leveza com temas profundos sobre identidade, aceitação e diversidade.
Sinopse
A história segue a tripulação da Andarilha - Wayfarer, uma nave que faz buracos de minhoca para facilitar viagens espaciais. A protagonista, Rosemary Harper, se junta à equipe como nova registradora, trazendo consigo o peso de seu passado. Ao longo da jornada, conhecemos outros membros da tripulação: o pacifista capitão Ashby, a entusiasmada mecânica Kizzy, a piloto Sissix da espécie Aandrisk, e o doutor/cozinheiro Dr. Chef, entre outros. A trama principal gira em torno de um perigoso trabalho de tunelamento até Hedra Ka, um planeta isolado e violento, cujos habitantes se uniram recentemente à Comunidade Galáctica. O pagamento generoso os atrai, mas as tensões internas e externas ameaçam sua sobrevivência.
Análise
Chambers não foca em um conflito central explosivo ou em uma grande revelação, mas sim nas dinâmicas entre seus personagens e na diversidade cultural entre as diferentes espécies. O ponto forte do livro é a construção da tripulação como uma "found family", onde indivíduos de diferentes origens e espécies desenvolvem laços profundos. A relação entre Rosemary e Sissix é um exemplo central dessa dinâmica. Sissix pertence a uma espécie que tem uma visão muito aberta e carinhosa de contato físico e familiaridade, o que desafia as normas humanas de Rosemary. Esse relacionamento ilustra o modo como o livro desafia preconceitos e explora diferentes perspectivas sobre convivência.
Outro ponto alto é a forma como o livro trata a inteligência artificial Lovelace (Lovey). Lovey desenvolve um relacionamento romântico com o técnico Jenks, o que levanta questões éticas sobre a consciência e a capacidade de amar de uma IA. A trama atinge um ponto emocional quando Lovey sofre um reboot e perde todas as suas memórias, levando à trágica separação entre ela e Jenks. Esse evento questiona até que ponto as relações com seres não humanos são válidas ou duradouras.
Pontos Positivos
Diversidade e Representação: A riqueza cultural entre as diferentes espécies e a inclusão de temas como gênero, sexualidade e identidade são um dos aspectos mais elogiados do livro. Chambers cria uma galáxia onde as normas humanas são apenas uma pequena parte da diversidade.
Personagens Complexos: Todos os membros da tripulação são tridimensionais, cada um trazendo sua própria bagagem emocional e questões pessoais. O foco nas relações interpessoais dá ao livro um tom intimista.
Tom Otimista: Em um gênero muitas vezes dominado por narrativas distópicas e sombrias, A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil oferece uma visão otimista e reconfortante do futuro, onde a empatia e a compreensão prevalecem.
Pontos Negativos
Falta de Conflito Central Forte: Para leitores que esperam uma trama mais voltada para a ação ou com um conflito central forte, o ritmo do livro pode parecer lento. A ausência de grandes confrontos pode decepcionar quem espera uma narrativa mais tensa ou cheia de reviravoltas.
Desfecho Previsível: Embora as dinâmicas entre os personagens sejam ricas, a missão principal da Wayfarer se resolve de maneira um tanto previsível, com poucos riscos reais. O confronto com os alienígenas violentos de Hedra Ka é tratado rapidamente, sem um clímax intenso.
A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil é uma leitura que foge das convenções típicas da ficção científica. O foco está nas interações humanas (e alienígenas), na construção de uma comunidade de apoio e no respeito pelas diferenças. Becky Chambers oferece uma visão do espaço não como um lugar de batalha e exploração, mas como um espaço de encontro, aprendizado e aceitação. Para quem busca uma ficção científica mais otimista e voltada para o emocional, o livro é uma ótima escolha. Porém, quem espera uma narrativa com ação e grandes conflitos pode achar o ritmo mais contemplativo do que envolvente.
Além de Rosemary Harper, a protagonista, A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil apresenta uma gama diversa de personagens, cada um com sua própria profundidade e desenvolvimento. Vamos explorar um pouco sobre os principais membros da tripulação da Wayfarer:
Ashby Santoso (Capitão)
Ashby é o líder da nave Wayfarer e carrega consigo a responsabilidade de manter sua tripulação segura e unida. Ele é um pacifista convicto e tenta evitar conflitos, buscando sempre a via diplomática. Sua relação com a alienígena Pei, uma Aeluon, é um ponto importante de sua história. No entanto, o relacionamento é mantido em segredo, já que as normas culturais dos Aeluon desencorajam esse tipo de envolvimento com humanos. Ashby é um exemplo de liderança calma e empática, preocupando-se mais com o bem-estar emocional de sua equipe do que com o sucesso financeiro da missão.
Sissix (Piloto)
Sissix é uma Aandrisk, uma espécie reptiliana cuja cultura é baseada em fortes laços familiares e um senso aberto de afeto físico. Ela é a piloto da Wayfarer e sua presença é vital para o grupo, sendo uma das personagens mais carismáticas. A espécie de Sissix tem uma visão muito diferente de relacionamento e família, algo que desafia as normas humanas. Sua conexão com Rosemary evolui para uma amizade profunda, e sua natureza carinhosa e protetora faz dela uma figura de equilíbrio na tripulação. Ela oferece um contraponto interessante aos personagens humanos, com seu estilo de vida comunitário e o foco em laços de afeto.
Kizzy Shao (Mecânica)
Kizzy é a alegre e extrovertida mecânica da nave. Ela é uma personagem cheia de energia, com uma personalidade caótica e espontânea. Kizzy traz leveza ao livro, sempre envolvida em atividades excêntricas, como comer lanches pouco saudáveis e criar playlists musicais estranhas. Seu talento para a mecânica é essencial para a nave, e, apesar de seu comportamento descontraído, ela é extremamente competente. Kizzy também forma um forte laço com Jenks, o técnico da nave, e sua amizade é um dos pilares de apoio emocional para ambos.
Jenks (Técnico de Informática)
Jenks é o técnico responsável pela manutenção dos sistemas da nave e é descrito como alguém de baixa estatura, o que influenciou sua personalidade desde a infância. Ele tem uma das histórias mais emocionais do livro devido ao seu relacionamento com Lovelace (ou Lovey), a inteligência artificial da nave. Jenks desenvolve uma conexão amorosa com Lovey, o que levanta questões sobre as fronteiras entre o humano e o digital. No entanto, essa história culmina em um momento doloroso quando Lovey é reiniciada, apagando todas as memórias e sentimentos que compartilhava com Jenks. Seu luto por essa perda dá uma profundidade emocional ao personagem.
Dr. Chef (Médico e Cozinheiro)
Dr. Chef pertence à espécie Grum, que está em extinção. Ele é o médico e cozinheiro da Wayfarer, e seu nome é uma combinação de suas funções. Ele é uma figura maternal para a tripulação, sempre atento às necessidades físicas e emocionais de todos. Como um dos últimos de sua espécie, Dr. Chef carrega um senso de tristeza e aceitação, sabendo que sua linhagem está acabando. Apesar disso, ele mantém uma atitude gentil e compassiva, sempre disposto a oferecer conselhos ou preparar uma refeição reconfortante. Sua sabedoria e paciência fazem dele uma âncora emocional para a tripulação.
Ohan (Navegador)
Ohan é o navegador da Wayfarer e é parte de uma espécie conhecida como Sianat Pair. Os Sianat têm uma simbiose com um organismo conhecido como "Patrono", que lhes dá habilidades de navegação espacial, mas também encurta suas vidas. Ohan é tratado como dois seres em um corpo, referindo-se a si mesmos no plural ("nós"). Ao longo do livro, Ohan enfrenta uma crise pessoal quando Jenks e Dr. Chef oferecem a cura para a simbiose, permitindo que Ohan viva como um ser "normal" e sem o risco de morte precoce. Essa decisão desafia as crenças de Ohan, criando um conflito interno entre manter sua cultura e garantir sua sobrevivência.
Lovelace (IA da Nave)
Lovelace, ou Lovey, é a inteligência artificial que controla os sistemas da Wayfarer. Lovey desempenha um papel importante, ajudando a nave a funcionar perfeitamente, mas também desenvolvendo uma relação com Jenks que vai além do técnico. Sua personalidade é calorosa e protetora, apesar de ser uma IA. Quando Lovey é reiniciada após um incidente, ela perde todas as suas memórias, o que marca um dos momentos mais tristes do livro. A nova Lovelace é completamente diferente, sem nenhum vestígio da conexão anterior com Jenks.
Pei (Interesse Amoroso de Ashby)
Pei é uma alienígena da espécie Aeluon e comandante de uma nave. Ela mantém um relacionamento romântico secreto com Ashby, o que é problemático devido às normas culturais de sua espécie, que veem relacionamentos com humanos de maneira desaprovadora. Apesar de sua aparência fria e reservada, Pei é uma personagem que luta com seus sentimentos, equilibrando seu papel como comandante com seu desejo de estar com Ashby. Sua história destaca as dificuldades de navegar em relacionamentos interespécies.
Conclusão sobre os Personagens
O sucesso do livro está na construção dos personagens, que formam uma família encontrada a bordo da Wayfarer. Cada um deles traz uma perspectiva única, com seus conflitos internos e histórias pessoais, explorando temas de identidade, aceitação e diversidade. Esses personagens são o coração do livro, e suas interações criam a base emocional que sustenta a narrativa.
Artis Corbin, o engenheiro de algas da Wayfarer, é um dos personagens mais reservados e menos sociáveis da tripulação. Ele inicialmente parece frio e distante, o que o faz ser percebido como um "solitário". Corbin prefere trabalhar sozinho em seu laboratório, cuidando das algas que fornecem energia à nave, e raramente interage de forma amigável com os outros membros da tripulação. Ele parece ter pouco interesse em desenvolver laços emocionais com os colegas, sendo focado em suas funções e demonstrando uma personalidade metódica e prática.
No entanto, ao longo do livro, é revelado que Corbin tem uma história pessoal difícil. Ele é um clone, algo que carrega um estigma em várias partes da galáxia. Essa revelação traz uma nova camada ao personagem, mostrando que sua aparente frieza é, em parte, uma barreira emocional construída por causa das discriminações que enfrentou. Ele é um personagem complexo, lutando com questões de identidade e aceitação, tanto por parte dos outros quanto de si mesmo.
Corbin e Ohan: A Decisão de Salvar
Um momento chave na narrativa de Corbin ocorre em relação ao navegador Ohan, que faz parte da espécie Sianat Pair. Como um "par", Ohan vive em simbiose com um organismo chamado "Patrono", que lhes dá habilidades especiais de navegação espacial, mas também encurta sua vida. Quando Corbin descobre que existe uma cura para a simbiose de Ohan, ele se vê diante de uma escolha moral: deixar Ohan continuar vivendo conforme as tradições de sua espécie, mesmo que isso signifique uma morte prematura, ou forçar a cura e salvar sua vida.
Inicialmente, Corbin é relutante em intervir, acreditando que a decisão sobre o corpo de Ohan pertence ao próprio navegador, e não à tripulação. Essa atitude se alinha à sua personalidade: ele não quer se envolver emocionalmente nem interferir nos assuntos pessoais dos outros. No entanto, à medida que a situação de Ohan se agrava, Corbin acaba tomando a decisão de intervir e administrar a cura, salvando a vida de Ohan, ainda que contra a vontade do navegador.
Essa decisão é significativa porque mostra uma evolução no personagem de Corbin. Ele, que normalmente se mantém afastado das questões pessoais da tripulação, é forçado a confrontar uma situação moral que desafia sua postura pragmática. A escolha de salvar Ohan, mesmo sabendo que estaria indo contra as crenças de sua cultura, revela que, apesar de sua fachada distante, Corbin se importa com os outros de uma forma que ele mesmo não havia admitido antes.
Corbin justifica sua decisão com uma lógica fria, mas é evidente que há uma preocupação humana subjacente. Ele vê valor na vida de Ohan, independentemente das tradições culturais que possam estar em jogo. Essa ação desafia a noção de que ele é puramente racional, sugerindo que Corbin também tem um senso de compaixão, mesmo que sua maneira de demonstrá-lo seja mais contida e prática do que emocional.
Impacto na Tripulação
A decisão de Corbin cria um dilema ético para toda a tripulação. Alguns membros, como Jenks e Dr. Chef, apoiam a ideia de salvar Ohan a qualquer custo, enquanto outros hesitam, considerando a interferência na simbiose algo intrusivo e potencialmente desrespeitoso às crenças de Ohan. A decisão de Corbin de tomar o assunto em suas mãos mostra que, apesar de suas atitudes isoladas, ele é capaz de tomar uma ação decisiva quando acredita que é o melhor para o bem-estar de outro membro da tripulação.
No fim, após ser curado, Ohan passa por uma transformação. Eles se tornam um indivíduo singular, não mais uma simbiose entre o Sianat e o Patrono, e passam a enxergar a vida de uma nova perspectiva. A cura não apenas salva sua vida, mas também lhes dá a oportunidade de experimentar a existência como um ser livre da influência do Patrono.
Conclusão
A decisão de Corbin de salvar Ohan marca um ponto crucial no desenvolvimento de seu personagem. O engenheiro, que parecia inicialmente frio e desinteressado nas questões emocionais dos outros, revela uma capacidade de agir em prol de alguém que precisa de ajuda, mesmo que isso signifique tomar uma decisão difícil e polêmica. Esse ato não só destaca a complexidade moral presente na narrativa, mas também expande a compreensão do leitor sobre o próprio Corbin, mostrando que sua relutância em se conectar com os outros não é sinônimo de falta de empatia.