Dhiego Morais 18/11/2023A longa viagem a um pequeno planeta hostil (que livraço!)Mãos sobre o teclado. Há incerteza ou insegurança sobre o que ou como escrever. É provável que essa seja a resenha mais difícil entre as que eu já tive a oportunidade de fazer. A razão disso não é por não ter curtido a leitura ou por qualquer outra coisa do tipo, mas justamente pelo contrário: A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil se tornou uma das minhas melhores e mais poderosas leituras de 2018, daquelas que você termina e sente como se cada personagem da história abraçasse o seu coração. Vamos tentar conversar um pouquinho sobre o livro, então?
Filha de uma especialista em astrobiologia e de um engenheiro espacial, Becky Chambers é uma verdadeira joia da nova literatura de ficção. A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil foi publicado inicialmente por financiamento coletivo, revelando Chambers como uma das grandes apostas do gênero nos últimos anos, e agora aporta em terras tupiniquins por meio do trabalho fabulosa da Darkside Books.
“O silêncio pertencia ao vácuo lá fora. O silêncio era a morte”.
Chambers guia os seus leitores por uma verdadeira viagem espacial, provocada pela imersão de sua narrativa fluida, habilidosamente tecida, palavra por palavra, diálogo por diálogo. Narrado em terceira pessoa do singular, conhecemos Rosemary Harper, uma jovem oriunda das colônias de Marte e que busca uma nova oportunidade, fora de sua terra natal. Essa oportunidade vem sob a forma de um trabalho, um estágio como guarda-livros de uma nave especializada em construir túneis espaciais com a finalidade de servirem como eixos de conexão para viagens rápidas, eficientes e seguras pelo tecido do espaço-tempo. Como guarda-livros, a função de Rosemary é manter os registros da nave atualizados, em ordem, se responsabilizando por uma série de papeladas cobradas pela CG (Comunidade Galáctica).
A nave em que Rosemary se conectará é a Andarilha, uma nave que viaja de planeta em planeta realizando serviços de “perfuração espacial”. Nela, os leitores entram em contato com Lovelace, a Inteligência Artificial responsável por gerenciar a Andarilha. Embora seja uma IA, Lovey é uma das personagens mais intrigantes e bem construídas de Becky Chambers. Fugindo de qualquer estereótipo, Lovelace ascende não somente como uma entidade dotada de um nível elevado de inteligência, mas também como uma personagem que frequentemente se mistura entre as figuras orgânicas. O entendimento da IA sobre os costumes e sentimentos humanos ou alienígenas é assustador. A Força Navegadora – motriz – da Andarilha tem todo um carisma próprio, uma problematização única, singular, que a imbui de um respeito e admiração crescentes. Não é difícil se esquecer de sua condição não-orgânica enquanto o coração se reconforta com os seus diálogos.
Ambientado puramente no espaço, com certa centralização nos limites da Andarilha, A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil apresenta ainda uma série de outras personagens icônicas: Ashby Santoso é o capitão da Andarilha, um humano bastante experiente quanto às perfurações espaciais, além de ser responsável por manter a união entre uma equipe tão diversificada; Sissix é uma alienígena com características reptilianas (mas não a reduza a um simples réptil racional), uma aandriskana, responsável por pilotar a Andarilha. Sissix é verdadeiramente apaixonante, dotada de uma cultura familiar que estabelece laços diferentes dos laços humanos, pouco a pouco o leitor reúne peças de um quebra-cabeça cultural fascinante.
“Somos especialistas da galáxia física. Vivemos em mundos terraformados e em gigantescos habitats orbitadores. Criamos túneis através da subcamada para pular entre sistemas estelares. Escapamos da gravidade planetária com a mesma facilidade com a qual caminhamos pela porta da frente. Porém, quando se trata de evolução, não passamos de uma ninhada recém-saída do ovo”.
Kizzy, junto de Jenks, constituem a equipe de técnicos da Andarilha. Kizzy é bastante participativa, aberta, divertida, e, por isso, promove uma conexão rápida não somente em sua própria equipe espacial, mas também entre os leitores. Jenks é a mais uma expressão da qualidade de escrita e do cuidado com o desenvolvimento das personagens por parte da autora. Embora ele seja descrito como “mais baixo do que a maioria das pessoas”, a inclusão dessa forma de representatividade é feita tão naturalmente que aceitamos esse detalhe e incorporamos a pele da personagem, enquanto vivemos sua história e seus dramas pessoais, mal percebendo que estamos fazendo isso.
Corbin talvez seja a figura menos amável da Andarilha. Esguio e de poucas palavras, o algaísta (responsável por coordenar os tanques de algas, matéria essencial para o bom funcionamento da nave) prefere passar o máximo de seu tempo solitário, na companhia de seus tanques. A solidão, a reclusão, a irritabilidade e sensibilidade frente à dificuldade de se manter sociável são temas facilmente extraídos dessa postura.
Dr. Chef é mais um exemplo de personagem que me enlaçou na medida em que a narrativa avançava. Sendo um grum, uma espécie sapiente em extinção, dotada de seis patas e um corpo robusto, Dr. Chef comandava a cozinha e a enfermaria. Além disso, por ser um grum, Chef se comportava como uma espécie de gênero fluido, ou seja, uma espécie que nascia com um sexo e que em determinado momento de sua vida passava por um processo de transição de gênero. No caso dos grums, nasciam fêmeas e depois se tornavam machos. A profundidade e a história de vida de Dr. Chef são ao mesmo tempo fantásticas e entristecedoras.
Por fim, a Andarilha acomoda ainda Ohan, um sianat par. Como parte do nome já induz, não se trata de uma figura no singular, mas no plural. Ohan são a representação da eficiência e do poder da simbiose entre espécies. Não vou me ater muito sobre Ohan, pois acho interessante que o próprio leitor junte as peças da personalidade, história e cultura do sianat par, bem como sobre suas relações interpessoais.
Há tanto, mas tanto para se falar sobre a complexidade das raças dessa história, que fica extremamente difícil filtrar e reduzir a uma resenha simples.
“Nunca vou esquecer o que me disse. Ele falou: ‘Isso significa que nós temos valor, que não somos irrelevantes’. E eu respondi: ‘É claro que vocês têm valor. Toda vida tem valor’. E ele me disse: ‘Mas agora eu sei que o restante da galáxia também pensa assim’.”
Becky Chambers constrói uma história brilhantemente plural e diversificada, onde as questões de gênero, de espécie e de sexo são desconstruídas e remodeladas sob uma visão que escapa de uma visão humanocentrista. A inclusão de uma Comunidade Galáctica, dotada de um leque rico de espécies sapientes unidas sob interesses comuns, bem como a adaptação para uma contagem de tempo distinta da que conhecemos, versada em decanas e padrões, atribui ainda mais complexidade e enriquece um livro tão poderoso.
É válido citar, claro, que A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil é um romance de ficção científica que não se concentra essencialmente em uma viagem ou missão espacial (embora seja o plano de fundo secundário), mas sim nas relações entre as personagens, entre o seu presente na Andarilha e o seu próprio passado. História sobre história.
De maneira delicada, Becky Chambers desenlaça os fios amargos de exclusão e falta de representatividade literária ao criar um elenco coeso, dotado de identidades próprias, que procura não apenas levantar bandeiras, mas acender um farol e revelar para o horizonte a naturalidade da diversidade. Aproveitando-se de sua escrita confortável, a leitura flui com naturalidade e encanta a cada página, a cada história e subcamada revelada. A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil é o típico livro que deveria ser lido por todos ao menos uma vez na vida.
(resenha originalmente postada no blog Skull Geek em 2018)