spoiler visualizarcoracinho 23/05/2023
O cansaço de ser brasileiro
Lima Barreto, com esse livro, para mim, conseguiu duas proezas. Uma é a de ser alguém comparável, em talento da escrita, ao meu favorito brasileiro inconteste, Machado de Assis. A outra foi a de condensar de forma extremamente hábil o sentimento de ser brasileiro.
Fui ler esse livro com uma vaga noção advinda das aulas de Literatura do Ensino Médio. Com o pouco que recordava, achei que iria ler uma crítica básica ao patriotismo com ares de fascismo brasileiro (que ganhou um impulso nos últimos anos). Aí é que me surpreendo, pois a crítica de Lima é mais profunda ainda. Policarpo Quaresma é um verdadeiro patriota. Ele valoriza a nossa riqueza social, cultural e natural acima de todas as outras do mundo (ao contrário de certos outros que se dizem patriotas, mas odeiam nossa cultura popular, nossa biodiversidade e nossa arte). Lima questiona os modelos de patriotismo que se distanciam na prática do que prega a essência do nacionalismo. Mas não para por aí. Ele questiona a noção de nacionalismo em si.
"E, bem pensado, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma ideia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou Deusa cujo império se esvaía?"
A minha experiência de ser brasileira (e creio que a de muitas pessoas, senão a maioria, também) é a de um constante jogo de amor e ódio. Possuímos riquezas muitas (não só no sentido material do termo), mas não cuidamos bem delas. Não preservamos nossas tradições culturais e nossa história. Não estudamos e conservamos nossa biodiversidade como deveríamos. Valorizamos excessivamente o estrangeiro e raras vezes nos voltamos para o que o Brasil produz.
Isso não é resultado de uma indolência natural do povo brasileiro, como muitos pseudocientistas já afirmaram. O nosso "cansaço" vem de um processo histórico, e não fisiológico. Com algumas poucas páginas, Lima conseguiu sintetizar em literatura algo que estudiosos de vários naipes e áreas tem tentado compreender há séculos. Isto é, o sentimento tão difícil de traduzir que é o cansaço de ser brasileiro. Como um aparato oligárquico, opressor e burocrático mata o que possa surgir de Policarpo Quaresma em nós. Daí que surge a famosa ironia limabarretiana. No país em que vivemos, a ironia e o cinismo são mecanismos de defesa.
"Triste fim de Policarpo Quaresma", desde o seu título, é superficialmente sobre as desventuras e o destino de um indivíduo. E é aí que Lima Barreto nos pega de surpresa e expõe, de forma contundente, o que há de estrutural naquilo que muitas vezes damos por algo singular.
Resumindo tudo, "Triste fim de Policarpo Quaresma" é um livro aparentemente simples, mas extremamente complexo. Delinear todas as discussões interiores e exteriores às suas palavras está muito além das minhas habilidades leigas. Basta dizer que é uma leitura geradora de muitas reflexões, e que eu definiria quase como necessária a todos os brasileiros. Mal posso esperar para ler outros livros do mesmo autor!
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