andre.marinhocosta 22/08/2020
Não era verdade quem vence, é a convicção
Penúltimo romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó não é o melhor. O fio narrativo central - o dilema de uma moça apaixonada por dois gêmeos - carece da profundidade e originalidade das obras anteriores, sobretudo quando se contrapõe às três imediatamente predecessoras - a trilogia que é o pináculo da carreira do maior escritor do Brasil. Não surpreende, portanto, que muitos considerem esta a mais fraca novela do Bruxo de Cosme Velho.
No entanto, a busca desesperada por um enredo cativante pode ocultar as grandes qualidades de um livro que, como nenhum outro, mergulha o leitor no pensamento político machadiano. Não que seja verdadeiro aquele mito de que o autor fugia da realidade de seus tempos e apresentava histórias alienadas do contexto histórico. Mas precisamente porque é nas reflexões do conselheiro Aires e na contraposição entre Pedro e Paulo que Machado traduz a visão circunspecta com que encarava eventos primordias: o movimento republicano, a abolição da escravidão, o colapso da monarquia brasileira e os primeiros desdobramentos da República.
Através da metafora bíblica, Esaú e Jacó são introduzidos como Pedro e Paulo, filhos de um casal alçado à elite carioca por meio do trabalho no serviço bancário. Desde a barriga da mãe, os gêmeos dão sinais de antagonismo, do que os pais só se dão contam depois do prognóstico de uma vidente cabocla. A família empreende todos os esforços possíveis para evitar as tensões fraternas, mas a oposição se intensifica ao ponto de chegar ao auge na arena política: Paulo se torna um advogado republicano e Pedro, um médico monarquista. Ambos implacáveis na defesa do que acreditavam, com a verdade dos acontecimentos em segundo plano. Afinal, "não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma idéia, e morrerás por ela", conforme lembra o conselho Aires, amigo da família, em determinada passagem.
O enredo principal começa a se desenrolar no momento em que fica claro que os dois compartilham um único traço em comum: o amor por Flora. Filha de um político sem rumo, a jovem entra em difícil impasse ao se ver apaixonada pelos irmãos, aos mesmo tempo, na mesma intensidade - a ponto de chegar a enxergá-los como só um. É claro que a moralidade da sociedade imperial jamais permitiria uma menina encantada por dois homens e ela teria que se apressar para escolher o amado.
O suspense advindo do dilema até desperta alguma curiosidade, mas bem poderia estar em qualquer obra romântica do início do século XIX. A assinatura de Machado, na verdade, está nas entrelinhas. Está na fina e sofisticada ironia que, sem dizer explicitamente, faz sarro do cotidiano e da estrutura da alta sociedade fluminense. Está na bilhante passagem em que o pai de Flora, um político conservador jogado ao escanteio pelo partido que representou a vida inteira, começa a se questionar se, na real, ele não seria mesmo um liberal. Ou então na tentativa da mãe dela, a Dona Claudia, de convencer o marido de que ele deveria considerar a mudança de partido para conseguir um cargo.
Com exemplos como esse, Machado denuncia o oportunismo da classe política que, embora dividida por colorações partidárias, invariavelmente compartilha um só interesse: a manutenção do poder. E, mesmo quando o arranjo monarquista dá lugar ao presidencialismo republicano, o status quo de uma sociedade estratificada permanece intacto. O tom de resignação das derradeiras páginas talvez seja reflexo do desencanto do autor, que tendo testemunhado tantos episódios históricos, chega ao fim da vida com a conclusão de que o Brasil sempre será esse.
Faz sentido que muitos leitores reclamem da monotonia narrativa de Esaú e Jacó. Mas é justamente essa suposta estagnação que o torna interessante. Não há motivo para pressa em busca da verdade se, no fim, quem sempre ganha é a convicção.