Psychobooks 01/12/2011
PsychoComics - Walter Tierno
Meu primeiro contato com esta história foi em 1987. Um amigo me emprestou as quatro edições da minissérie, que foi originalmente publicada pela Abril Jovem. Eu era adolescente e não ligava muito para quadrinhos, porque pouca coisa de qualidade era publicada por aqui. Pelo menos em pontos tradicionais, como bancas de jornais. Os quadrinhos americanos - exceto os undergrounds e independentes - ainda sofriam com a censura imposta pelo Macarthismo e o terrível Comics Code. Como foi dito acima, no editorial da Amazon, Batman era um personagem infantil e tolo. O passo inicial para mudar essa imagem do herói foi dado por Dennis O'Neil e Neil Adams. Eles já haviam começado a dar ares mais sombrios ao Batman desde a década de 70. Mas quem transformou definitivamente, não só o personagem, mas também toda a indústria de quadrinhos, foi Frank Miller. Miller começou sua carreira na Marvel, assumindo um título à beira do cancelamento e transformado-o em fenômeno de vendas: Daredevil (Demolidor). Portanto, não foi por acaso que a DC Comics entregou a ele um de seus personagens mais icônicos e concedeu liberdade para que ele o reinventasse
O "Cavaleiro das trevas" de Miller foi apresentado com uma solução narrativa surpreendente e que foi imitada à exaustão até metade dos anos 2000. Algo que o autor já havia experimentado em sua passagem por Daredevil mas que, em "Batman - o cavaleiro das trevas" levou a outro nível. Nos quadrinhos, era norma que a narração fosse feita em terceira pessoa, mas Miller escolheu a voz em primeira pessoa e deixou que os personagens vomitassem suas angústias, medos, neuroses e desafios. É realmente assustador ler as motivações de Batman e imaginar que o herói - aquele sobre o qual equilibram-se as esperanças do bem - esteja à beira da sociopatia.
O discurso político da minissérie é ponto marcante. Escrita em plena guerra fria, apresentava um futuro sombrio, descontrolado, violento e à beira do caos. Na verdade, estamos vivendo o tempo em que a história se passa e agradeça por não estarmos em um mundo tão parecido com o que Frank Miller profetizou. Eu disse "tão parecido"... Afinal, aí estão o aquecimento global, a super população, o controle da mídia e vários outros horrores que são mostrados na HQ. Mas não se deixe contrariar por essa imprecisão das professias do autor. Quando filmaram "De volta para o futuro, também acreditavam que, em 2010, existiriam skates voadores e carros movidos a lixo. Ainda estou procurando essas duas maravilhas... Como a maioria das obras de ficção futurista, o "Cavaleiro das trevas" tem a intenção de questionar e denunciar seu próprio tempo, apresentando as consequências que condutas e ideologias poderiam ter sobre as gerações futuras. Ao longo da minissérie, há uma tensão crescente entre a URSS (pois é... Miller não sabia que o muro de Berlim cairia, três anos depois) e os EUA sobre uma ilha fictícia chamada Corto Maltese (homenagem de Miller à criação mais popular do mestre dos quadrinhos italianos, Hugo Pratt). À beira da terceira guerra mundial, o governo dos Estados Unidos utiliza sua arma secreta: Super-homem.
Super-homem representa o controle hipócrita e aparentemente inócuo do governo, que é representado por um presidente ignorante e cara-de-pau, não por acaso, uma caricatura de Ronald Reagan. Batman representa uma revolução libertária, ao mesmo tempo, militarmente disciplinada. É irônico pensar que o ex-repórter vindo do interior (Clark Kent) represente o liberalismo conservador e o multimilionário (Bruce Wayne) represente a força revolucionária socialista. Mesmo que essa possa não ter sido a intenção de Frank Miller, foi o que acabou construindo em sua obra.
O embate decisivo entre as duas forças é inevitável e, seu eu disser o que acontece, posso acabar entregando spoilers que estragariam sua leitura.
O desenho de Miller é tão revolucionário quanto seu texto. Ele tem controle sobre movimento e ângulo de câmera. Sua diagramação, a exemplo do mestre Will Eisner, abalou os conceitos até então estabelecidos para os quadrinhos. Há sequências inacreditavelmente corajosas, como a cena em que Bruce Wayne relembra o assassinato dos pais, totalmente silenciosa e angustiante. Aliás, muitos cineastas já tentaram reproduzir essa cena nos filmes de Batman, mas nunca chegaram perto da carga dramática que Miller, mesmo sem o recurso do movimento ou mesmo de texto, conseguiu expressar.
Outro recurso muito copiado foi a inserção dos comentários na televisão, com as telinhas aparecendo o tempo todo para mostrar as consequências dos atos dos personagens ou os cenários em que eles eram inceridos. Se você assistiu a Robocop, agora sabe de onde o diretor copiou o recurso que usou amplamente no filme.
Miller também abusa de painéis em página inteira. São cenas que "explodem" na cara do leitor!
As soluções gráficas de Frank Miller são uma costura de referências brilhantemente costuradas: Hugo Pratt, Will Eisner e Goseki Kojima. Foi o primeiro artista norte-americano a trazer influência dos mangás para as terras de Tio Sam. É uma pena que, anos depois, alguns artistas confundam influência com cópia pura e simples, mas fazer o quê?
Curiosidades:
A capa de Robin, nesta minissérie, é assumida por uma menina. Talvez fosse intenção de Miller afastar definitivamente a teoria de que Batman e Robin tivessem uma relação amorosa e, consequentemente, pedófila. Ele preferiu mostrar que a relação entre os personagens é paternal. A menina que assume a identidade de Robin é uma "órfã ideológica". Seus pais, ex-hippies, não a controlam ou disciplinam e ela busca esse direcionamento ideológico na figura autoritária e rebelde de Batman. Temas com discussão para mais de horas!
Pouco tempo depois, Frank Miller reescreveu a origem de Batman. A aclamada "Batman - Ano um". Não tem a mesma força questionadora e revolucionária do "Cavaleiro das trevas", mas é outro clássico copiado à exaustão pelas gerações de artistas seguintes. Outra obra que vale a pena.
Em 2001, sabe-se lá o motivo (só pode ter sido dinheiro fácil), Miller escreveu e desenhou uma continuação de "Batman - o cavaleiro das trevas". Conhecida como DK2. Uma bomba. Há quem defenda que essa obra foi mal compreendida. Em minha opinião, é uma condescendência de quem não quer acreditar que um gênio como Miller não seja capaz de cagadas. Pois foi. nem chegue perto disso.
Miller também resolveu aventurar-se pelo mundo do cinema com uma adaptação de "Spirit", criação mais popular de Will Eisner. Fique longe disso, também!
Frank Miller tem outras obras que valem ser conferidas: Ronin, Sin City, Demolidor: a queda de Murdock e Elektra: assassina. Os dois últimos, com desenhos de Bill Sienkiewicz e David Mazzucchelli, respectivamente.
Onde encontrar:
A Panini lançou uma edição luxuosa com as duas minisséries do "Cavaleiro das trevas": a sensacional, de 1986 e a "viagem na batatinha" de 2001. Mas essa edição está esgotada. Para quem lê inglês, resta importar as encadernações pela Amazon ou pelo Book Depository. Os preços são convidativos, para quem tem cartão de crédito internacional. Quem não tem, resta a Livraria Cultura que está com um preço ótimo! Mesmo que você não leia inglês, mas pretende, um dia... garanta sua cópia. Quando conseguir ler, verá que eu não menti e você comprou um quadrinho que vale a pena. Muito.
Minha nota?
Batman - o cavaleiro das trevas simplesmente foi a obra que me viciou em quadrinhos. Eu tinha 14 anos quando li e ela simplesmente mudou minha forma de ver o gênero. Essa visão foi consolidada com Watchmen... mas essa é outra história...
Link: http://www.psychobooks.com.br/2011/05/psychocomics-dicas-3-batman-o-cavaleiro.html