Filipe 21/06/2011
Oskar Matzerath, Emissário do Caos
No ano de 2009, comemora-se o quinquagésimo aniversário do grande romance de estreia de Günter Grass, "O Tambor". Publicado originalmente em 1959, como primeira parte da "Trilogia de Danzig" (Danziger Trilogie), o livro gozou de enorme repercussão no meio literário da época, angariando de imediato admiradores fervorosos, bem como opositores irados, e transformou-se em um dos mais importantes romances da literatura do pós-guerra.
O narrador é o excêntrico Oskar Matzerath. Em 1952, interno de um hospício e dispondo de todo o tempo do mundo, Oskar decide escrever suas memórias. Assim, pede a seu enfermeiro, Bruno, que lhe traga 500 páginas de papel “virgem”. Com o espesso bloco na mão e a caneta-tinteiro devidamente cheia, Oskar começa sua narrativa, que tem início no cair da tarde de um dia de outubro, em um campo de batatas – data e local da concepção de sua mãe. À parte deste episódio insolente, sua própria história, no entanto, inicia-se apenas mais tarde, em 1924, quando vem ao mundo com os “olhos abertos”, isto é, com o intelecto já plenamente desenvolvido. Uma vez que seu crescimento é interrompido aos 3 anos de idade por conta de um acidente (ainda que ele afirme haver optado parar de crescer, sendo o acidente mera encenação), Oskar permanece eternamente uma criança aos olhos da sociedade e dispõe da “perspectiva de baixo” (Perspektive von unten) para observar o mundo dos adultos. Por ocasião de seu aniversário de 3 anos, recebe de presente um pequeno tambor, o qual virá a ser seu companheiro de toda a vida e de cujo rufar, à guisa das musas, ele se servirá para rememorar e narrar os acontecimentos do passado.
Através dos “olhos claros” do mefistofélico Oskar Matzerath e de seu relato episódico, fragmentado, Grass nos apresenta um panorama histórico que se estende desde o período entre-guerras, passando pela ascensão do nacional-socialismo, até chegar à Alemanha dividida de pós-1945. A partir do microcosmo da pequena burguesia alemã e polonesa de Danzig, o autor expõe com ironia e crueza brutais a mentalidade estreita e alienada do povo alemão do início do século: o descaso, a ingenuidade e, mais tarde, o fervor cego com que este abraçou o nazismo e do qual depois se viu cativo.
Tachado na época de sua publicação de sacrílego, obsceno, e mesmo pornográfico, "O Tambor" é considerado hoje um marco na história da literatura alemã. Servindo-se dos moldes do romance de formação – gênero este tipicamente alemão, que tem no "Wilhelm Meister" de Goethe seu canônico exemplar –, Grass desconstrói, subverte, deturpa, numa palavra: reinventa o gênero, ampliando os horizontes literários e estéticos da época de maneira inaudita. Ao contrário de Goethe, seu herói não se desenvolve ou amadurece ao longo de sua jornada. Oskar já nasce pronto, não muda, não cresce, não melhora, de modo que sua história serve apenas para confirmar aquilo que ele sempre soube ser: o dos “olhos abertos”, o provocador, observador inescrupuloso da improbidade humana, força demoníaca a desagregar tudo o que toca. Para Oskar, nada é sagrado ou digno de reverência: zomba da Igreja, desafia a lei, ri-se da moral. Oskar é a aberração que se recusa a compactuar com a sociedade, mantendo-se adulto em corpo infante, a fim de minar-lhe as bases; que despreza a humanidade e o expressa ao fazer de si próprio uma caricatura grotesca, ao mesmo tempo amada e odiada – é o espírito da contradição, o anão maldito cujo canto estilhaça vidraças e cujo tambor escarnece da própria existência.
Cinquenta anos após sua publicação, "O Tambor" de Günter Grass, com seu estilo barroco e sua profunda reflexão histórica, conduzida a partir de uma perspectiva rasteira permeada de cinismo, mostra-se semelhante a seu anti-herói: parece recusar-se a envelhecer. Incansável, Oskar segue rufando seu tambor, instilando o caos por suas páginas e lembrando-nos de que seu canto macabro ainda se mantém assustadoramente moderno.