Fernanda631 09/11/2022
Guerra e Paz
Ler "Guerra e Paz" sempre foi um sonho, cujo realizei a alguns anos, momento que me senti pronta e preparada para essa jornada, e finalmente terminei suas 2.536 paginas. A sensação de concluir um calhamaço assim é indescritível. A escrita do Tolstói é um deleite.
O romance de Tolstói aborda sobre o caráter fatídico dos conflitos sangrentos nas relações humanas. Explora as origens das guerras napoleônicas no Oriente (em 1805 e 1812) e seus resultados, focando nos seus impactos gerais sobre a vida do povo russo, mas também nos destinos individuais dos atingidos por esses eventos históricos.
Não existe um personagem principal em Guerra e Paz, apesar de alguns deles ganharem mais destaque do que outros. Esse é um livro sobre a vida russa e sobre como essas vidas foram afetadas pela guerra. A obra reflete sobre as consequências de uma guerra na vida de homens, mulheres e crianças. Com cada homem morto no campo de batalha, todo o seu inimitável mundo espiritual perece, milhares de fios são rompidos, os destinos de seus entes queridos implacavelmente mutilados.
O leitor começa acompanhando uma reunião na casa de uma personagem, aí algumas pessoas vão chegando, personagens que vão surgindo, mais pessoas aparecem, e mais e mais e mais, aumentando o número de pessoas no local. E é aí que é entendido ou melhor, compreendido a real dificuldade na leitura dessa obra. São muitos personagens, e os nomes russos tendem a ser complicados.
Guerra e Paz não é um livro para ler em qualquer lugar. A narrativa é realmente envolvente e, nesse sentido, os vários personagens dificultam que o leitor se sinta entediado. Os pontos de vista estão sempre mudando em momentos interessantes e eu ia lendo querendo que voltasse logo para aquele outro personagem e assim por diante, pelo motivo obvio que qualquer leitor vai entender, queremos saber o que acontecera co o personagem, ou seu pensamento a respeito dos acontecimento que estão acontecendo no momento.
Esse é um livro que você precisa sentar e ler, com lápis e papel do lado para auxiliar na sua compreensão. Existem listas de personagens na internet, mas, eu recomendo que cada um faça seus próprios esquemas da forma que fizer mais sentido, porque cada pessoa aprende ou entende de uma forma especifica e nem sempre os esquemas da internet com os personagens irá ajudar você novo leitor.
Eu ia anotando os nomes dos personagens, seus laços com outros personagens e características que eu achava marcante, interessante ou importante. Aí, quando eu precisava, eu consultava e, com o tempo, eu fui lembrando dos personagens mais importantes e não precisava consultar minhas notas o tempo todo. É importante mencionar que a dificuldade gerada pelo número elevado de personagens é apenas uma dificuldade inicial e passageira, conforme for encaminhando a leitura vai se tornando mais fácil, e como eu disse, se você tomar notas e se organizar, logo isso deixará de ser um problema.
Em Guerra e Paz, assim como em Anna Kariênina, Tolstói trabalha muitos antagonismos, como fica explícito no próprio título. A pobreza e a riqueza são exploradas, assim como a juventude e a maturidade, o amor e a indiferença, e também as diferentes e controversas funções de uma guerra. Os debates que os personagens travam sobre a guerra que está por vir e a forma como cada um encara isso foram alguns dos pontos que eu realmente adorei. A honra e o desejo de ser lembrado é posto em questão frente à necessidade de permanecer vivo.
Tolstói consegue dar profundidade a todos os seus personagens. Cada personagem tem suas próprias angústias, suas dúvidas, seus medos, seus anseios e desejos e sonhos e, em meio a toda essa vida, surge uma guerra que coloca tudo em um plano diferente, onde tudo é mais incerto e nada é previsível, como é a vida real.
Tolstói constrói seus personagens em cima de sutilezas e nuances, fazendo com que o leitor vá absorvendo pouco a pouco daquela personalidade. Alguns exemplos, Pierre é ingênuo e tolo, Vassíli é um oportunista e Andrei é constantemente insatisfeito e controverso. Não é como se fulano fosse bom e ciclano ruim, são nuances, variações de uma mesma característica, de uma mesma pessoa. Da mesma forma que o leitor sente pena de Pierre, sente também repulsa pela sua ingenuidade extrema. Assim como Andrei, que nos desperta compaixão e raiva ao mesmo tempo. Pierre é claramente inspirado no próprio Tolstói, basta conhecer um pouquinho sobre a história do autor para perceber que o personagem foi inspirado nele próprio.
A evolução dos personagens é algo único de se acompanhar, principalmente se levarmos em consideração que a situação de guerra é atípica e extrema, o que gera um desenvolvimento de personagens diferenciado, brilhantemente feito por Tolstói. O desejo de ir para a guerra quando não se sabe o que realmente é a guerra é contraposto com o desejo de voltar para casa depois que se vive os terrores da guerra de fato. Me senti em um jogo cruel em que eu torcia pelos personagens ao mesmo tempo que sabia que tudo poderia acontecer, lembrando que guerras são reais, e pessoas assim existem.
Antes do início da guerra, acompanhamos as pessoas se divertindo e as conversas sobre a guerra ainda soando como algo relativamente distante e talvez até implausível e, conforme as páginas vão passando, começa a parecer que uma nuvem negra vai surgindo e cobrindo tudo. A guerra se torna o assunto principal e os medos se tornam muito mais reais. Tolstói misturou fatos históricos com ficção e criou uma obra épica.
O livro vai ficando mais triste e pesado conforme os relatos de guerra vão ganhando espaço. Algumas passagens são bem pesadas e as reflexões são bastante sombrias, não se esqueça o livro aborda a temática guerra. Tolstói alterna fatos históricos com ficção, descrições de guerra com momentos divertidos, cenas de riqueza com relatos pesados de guerra. É um livro complexo e completo, com ação, romance, drama e comédia. Gosto de como o autor humanizou uma guerra que, a princípio, a gente só conhece a visão geral por conta do que estudamos na escola. A guerra também é uma prova da resistência do homem e da sua capacidade de descobrir o significado de sua existência, mesmo sob as condições mais adversas.
É insensato querer que um livro com mais de 2.536páginas seja fluido e legal o tempo todo, teve momentos em que a leitura foi cansativa sim, é uma obra brilhante, mas também detalhista e minuciosa sobre algo triste e cruel. Porém, dada a magnitude dessa obra, acho que o que importa é a experiência de leitura. Os momentos chatos compõem essa experiência, que é grandiosa e épica do começo ao fim. Essa leitura me proporcionou momentos únicos. Eu ri, me emocionei, fiquei chocada, precisei fechar o livro para respirar, fiquei com raiva, fiquei sem acreditar em certas situações, enfim, uma centena de sentimentos. Guerra e Paz me despedaçou em muitos momentos, mas também me deixou com o coração aquecido, acredito que os leitores também terão essas emoções.
Eu gosto muito da técnica de escrita que o autor usa para transitar entre as passagens, ele conseguia aguçar minha curiosidade para os próximos acontecimentos e quebrar uma possível monotonia que uma cena muito longa poderia me causar. Esse dom que o autor tinha com as palavras fica muito evidente em Guerra e Paz, nas reflexões propostas pelo autor e na forma como ele elabora os personagens.
Com seu talento incomparável, Tolstói pinta o íntimo entrelaçamento do homem e da paisagem, tanto a física como a emocional, muitas vezes contrastando a majestade da natureza com a loucura humana, com o uso da mecânica da violência da guerra.
O romance é libertador e transformador, provocando uma mudança em nossa percepção e compreensão do mundo. Ninguém antes de Tolstói mostrou a guerra com tal realismo e poder artístico, negando qualquer interpretação romântica e vendo a guerra como a maior manifestação do mal, um fenômeno contrário à própria natureza do homem.
É preciso superar muitos medos comuns para encarar essa leitura. O medo de clássicos, o medo de obras russas e o medo de calhamaços, são exemplos. Eu recomendo fortemente, acho que nenhum leitor passa por essa obra sem ser transformado.
Não recomendo começar com uma obra assim tão grande logo de primeira, pois é uma obra russa não se esqueça que a escrita também pode ser considerada um pouco difícil para a maioria dos leitores, mas isso não diminui a magnitude da obra, que sendo sincera é perfeita!
A leitura de Guerra e Paz é magnífica.