Lucas 24/05/2017
Vasto, magnífico e surpreendente, como a Rússia: faltam palavras, sobram emoções
É uma tarefa perturbadora tentar traduzir em palavras algo denso, profundo e que marca emocionalmente um ser humano. Diante de tal desafio, ficará sempre incutido no coração de um leitor a sensação de que a opinião de determinada obra literária jamais será plena e justamente avaliada por ele. Mas é aí que o amante de literatura chega ao dilema mais engrandecedor que pode sentir: como colocar em palavras as sensações provocadas por tamanha infinidade de ensinamentos, história e valores?
Por mais que a tarefa seja árdua, a obra suplica, clama, em troca do fascínio que despertou, que seja recomendada, eternamente, a quem lê ou não. Assim, na contramão do sentimento de "impotência" em definir algo tão belo, surge a quase necessidade de que, de algum modo, a obra seja perpetuada, resenhada e indicada, registrando-se em algum lugar o encantamento que ela produziu. Afinal de contas, não tem grande valia ler algo tão marcante sem que o leitor compartilhe e até divague, se possível publicamente, sobre o fascínio despertado.
Todos estes dilemas combinados elucidam bem a mente de quem finaliza a leitura de Guerra e Paz, obra-prima do russo Liev Tolstói, publicada entre 1865 e 1869. É impossível que, ao falar do livro, não venha acompanhado desse relato o seu tamanho: são mais de 2.500 páginas na (belíssima) edição em dois volumes da "finada" editora Cosac Naify, que fazem de Guerra e Paz um dos maiores livros da história da literatura. Mas a narrativa, tão fascinante e rica em história, diálogos épicos e ensinamentos eternos, trás um percepção de que qualidade e quantidade podem sim andar de mãos dadas, desde que haja um gênio por trás disso.
Tal encantamento é melhor absorvido pelo leitor se ele entender, minimamente, o contexto histórico da Rússia nas duas primeiras décadas do século XIX, que é quando a história se passa (mais precisamente entre 1805 e 1820). Desigual e, porque não, feudal, o chamado Império Russo era um país imenso territorialmente (a Rússia sempre foi o maior país do Globo, em termos territoriais) e, por mais que houvesse uma nobreza que valorizava as artes, a religião e os costumes locais, ajudando a construir, assim, a imagem que a Rússia como pátria possui atualmente, havia nela uma influência enorme em termos sociais da Europa Ocidental, especialmente da França, a grande potência da época. Tolstói aponta isso em sua história, muitas vezes com ironias, por meio das centenas de frases em francês que os personagens falavam em seus diálogos (e que foram mantidos no texto original, mas traduzidos em notas de rodapé, num trabalho perfeito do tradutor Rubens Figueiredo), cujo uso seria o de "mostrar" à sociedade que tal personagem tinha uma cultura superior por entender o idioma francês. O autor também aponta os erros de pronúncia que ocorriam em algumas dessas falas, ressaltando assim que falar francês nestes meios sociais da Rússia servia apenas como uma mera futilidade, que muitos elementos da nobreza alimentavam e difundiam.
Esta mesma classe superior, da qual o próprio Tolstói era proveniente, tinha um apego gigante às monarquias, que ficaram ameaçadas com as vitórias do imperador Napoleão Bonaparte, que, após a Revolução Francesa, desafiou e venceu, na maioria dos casos, praticamente todos os regimes monárquicos da Europa. O possível fim da servidão, de um regime quase feudal de distribuição de terras e de um sistema político que era montado por poucos e comandado por menos indivíduos ainda, era o que transtornava a classe superior, contrária à mudanças profundas que poderiam dirimir o seu conforto e bem-estar. Todo esse contexto social, e com Bonaparte provocando e vencendo guerras cada vez mais ao leste europeu, deixava a realidade russa ainda mais tensa, cujo estado se intensificou ainda mais com a invasão do Exército Francês à Rússia, em 1812. Esta operação militar marcou o início da queda de Napoleão, cujo fracasso ocorreu, em parte, pelos mesmos motivos que fizeram um certo líder alemão sofrer uma derrota similar sob o mesmo solo quase 130 anos depois: menosprezo ao exército inimigo e a imensidade de um território, que tornava humanamente impossível o seu efetivo controle. O líder francês, apesar de representar uma ameaça à nobreza, não tinha interesse em uma maior igualdade social à Rússia, o que poderia rotulá-lo de "libertador dos oprimidos". A obra esclarece perfeitamente isso, colocando Bonaparte no centro da narrativa em diversos momentos (brilhantes, que expõem o seu caráter e suas ações).
Tudo isso e muito mais é retratado em Guerra e Paz, um livro que pode ser definido como uma mistura ideal entre romance, ficção e história; é um épico que procura demonstrar uma Rússia que tenta sair de uma "bolha selvagem" para uma identidade mais independente e única, mas que é consolidada apenas na segunda década do século XX, com a queda do regime monárquico. Nesta tentativa de transformação, o lugar do romance e da ficção é valorizado por meio de uma história magnífica, com personagens eternos, que ficam amarrados a toda esta ebulição social em que viviam. É verdadeira a informação de que há centenas deles, mas a narrativa gira em torno de três: o príncipe Andrei Bolkónski, o recém-chegado Pierre Bezúkhov e a encantadora Natacha Rostóv. Cada um deles carrega consigo uma imensidade de outros personagens, que, felizmente, Tolstói desenvolve em muitas das suas complexidades. Um aspecto importante que une todos esses núcleos, além da ficção e da habilidade narrativa do autor, é a influência dos rumos da história da Rússia na época, com seus conflitos externos e algumas reformas internas, capazes de fortalecer ou enfraquecer os laços familiares e status social em que tais personagens se inseriam. E todos esses protagonistas trazem com a sua respectiva realidade um desenho perfeito da sociedade russa da época, com nuances decadentes, ambiciosos e promíscuos. A veneração que muitos tinham à monarquia (representada pelo grande tsar Alexandre I) chama a atenção para estes aspectos hoje rasos, mas que estavam muito em voga na época.
Dentre os protagonistas, não é sensato traçar em uma resenha os traços principais de cada um. Teoricamente, Pierre Bezúkhov é o personagem principal: tem mais "tempo" de páginas e sua personalidade é mais bem explorada. Ele trás para si esse ar (justo) de protagonismo até pela adaptação da BBC de 2016 (genial, aliás, apesar de alguns exageros em comparação com a obra original). Mas, além dele, o príncipe Andrei é, em poucas palavras, monstruosamente incrível. Sem dar spoiler, o futuro leitor pode ter a certeza de que quando o foco da narração está nele, em sua família e nos demais componentes do seu círculo, ensinamentos e momentos sublimes certamente ocorrerão. Andrei Bolkónski é a síntese de grande parte dos valores que Tolstói queria (e conseguiu) perpetuar. No lado feminino, Natacha também assume os vieses de uma mulher que evolui, em todos os sentidos, com o tempo, demonstrando o quanto as metamorfoses da vida aprimoram o ser humano.
Por mais que, de fato, a história seja fascinante da primeira (que é em francês) até a última frase, Guerra e Paz, assim como todo clássico, possui momentos de maior reflexão filosófica, que fazem a leitura ser "beneficamente cansativa" em alguns trechos, o que incluí as últimas páginas da obra. O interessante, no entanto, é que nestas horas mais reflexivas se tem uma ideia da história da Rússia (retratando fielmente algumas figuras reais, como o Comandante em Chefe Mikhail Kutúzov, brilhante general que comandou o Exército Russo na invasão francesa e que é pouco conhecido no Ocidente), do caráter do ser humano, da maneira com que se trata a história geral, entre outras dezenas de tópicos, que, todavia, nem sempre possuem relação com a ficção desenvolvida no livro. Essa falta de ligação trás sim, em alguns momentos, certo marasmo, mas são descrições que provocam uma alta carga de reflexão e, se forem apreciadas da forma que merecem, convidam o leitor a pensar.
Milhares de páginas, centenas de personagens, as Guerras Napoleônicas, a história de um país que está a quase 15.000 km do Brasil, entre outros, são aspectos que assustam o futuro leitor e podem fazer com que quem se propõe à leitura passe por situações de dúvida quanto à utilidade real da obra. Para os que fazem esse tipo de questionamento, pobre por si só, Liev Tolstói pode elucidar isso com um dos seus maiores ensinamentos: "Há quem passe por um bosque e só veja lenha para a fogueira". Guerra e Paz é justamente isso: um bosque quase infinito, repleto de história, drama e valores perpétuos. E o futuro leitor (ou seria explorador?) pode estar ciente de que, ao entrar neste emaranhado de emoções, sairá de lá talvez cansado, mas inegavelmente fascinado e positivamente transformado.