mpettrus 29/05/2021
A Tragicidade de Cinzas do Norte
O romance de Milton Hatoum, Cinzas do Norte, foi meu primeiro contato com a obra desse escritor amazonense. E de imediato, senti uma identificação com o universo ficcional por ele explorado. E foi uma identificação afetiva, pois sua investida pelo espaço amazônico e pela cultura vivenciada, com todas as nuances sensoriais trabalhadas na memória de seus narradores, lembrou a minha própria vivência.
No universo literário desse romance, o elemento mais importante é a memória, a origem de toda a sua narrativa. Muito interessante que Hatoum, o autor, trabalha uma simbiose de memórias com as memórias dos narradores do romance, pois ao mesmo tempo que faz um trabalho do uso de memória pessoal, a narrativa também é trabalhada a partir da memória do narrador, realizando um curioso duplo movimento dentro da narração. E dentro dessa gôndola, Hatoum fala de identidade, aspecto cultural, entre lugar, memórias, ruínas e cinzas.
Manaus é o espaço privilegiado desse romance. Muito interessante que Hatoum nos apresenta a capital amazonense como uma personagem passiva que, como seus moradores, é espoliada e sofre com as mudanças econômicas e com a devastação urbana e florestal provocada pela ambição colonizadora de empresários estrangeiros e brasileiros com as bênçãos do governo militar, contexto da história se passa no período da Ditadura Militar, onde esse regime denuncia uma decadência galopante.
Os dramas familiares, conflitos conjugais, adultérios compõe todo o tecido do romance. E para completar todo o enredo, Hatoum nos entregou personagens terrivelmente carismáticos e emblemáticos. O narrador principal do romance é Olavo, que acompanha à distância os passos do seu melhor, Raimundo Mattoso, que envia cartas e lhe confidencia toda a sua angústia diante da vida familiar e descontentamento com o pai. É interessante ressaltar que além de Olavo, temos ainda a narração do personagem Ranulfo. Os narradores de Cinzas deambulam por fronteiras construindo suas narrativas através de fragmentos, de restos, lembranças e suas observações pessoais do mundo. Mas o narrador principal, Olavo é quem recolhe todos esses relatos para compor a história de seu melhor amigo, e, por conseguinte, compor o próprio enredo da história como um todo.
Eu me emocionei muito com as cartas de Ranulfo, pois revelam o passado de Raimundo e Alícia, e somente no fim da jornada eu compreendi que a narração da personagem era uma forma de homenagear mãe e filho. E até o último momento, eu tinha minhas dúvidas sobre quem seria o verdadeiro pai de Raimundo. E fiquei chocado com a revelação.
A história trágica de Mundo, um herói problemático, porém, altamente carismático, que vai desenvolvendo uma feição revolucionária no decorrer da narrativa, é também a história trágica de todas as outras personagens a sua volta. Sobretudo, das personagens femininas: Alícia e Ramira, duas criações de Hatoum que me conquistaram nas primeiras linhas assim que apareceram na história. São personagens levadas numa sequência de desencontros, de vidas abaladas pelo sofrimento e intrigas familiares, onde uma seguiu em frente (resignada e compenetrada) e a outra, que sofreu os reverses de suas más decisões. Porém, ambas com destinos selados a tragicidade de suas existências.
Porém, nada foi mais trágico, mais triste e mais cruel do que emblemática passagem na história de Manaus do que a vida de um homem chamado Trajano Mattoso. Sua derrocada, ao que percebo agora depois que finalizei a leitura do romance, iniciou ao casar-se com Alícia, de quem não tinha amor, mas por quem amava. E a sua presença na narrativa sempre fora muito significativa para a trama, pois sempre estava por trás de tudo de importante que acontecia, corrompendo, influenciando, urdindo as entrelinhas da vida de Mundo, Ran e Jano. Mas ela e o filho também pagaram suas penitências antes do fim de tudo.