lucasfrk 24/02/2022
Odisseia ? Resenha
Assim como a Ilíada, a Odisseia constitui um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. Como Frederico Lourenço diz em seu excelente prefácio: ?A Odisseia de Homero é, depois da Bíblia, o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos no imaginário ocidental?. Tratando-se de uma sequência dos acontecimentos da Ilíada, se faz como um poema fundamental no cânone ocidental, de forma que é a segunda ? atrás da própria Ilíada ? obra da literatura ocidental. É um poema épico elaborado ao longo de séculos de tradição oral, tendo tido sua forma fixada por escrito, no final do século VIII a.C., muito provavelmente. A linguagem homérica mescla dialetos diferentes, inclusive com reminiscências antigas do idioma grego, o que resulta em uma língua artificial, porém, compreendida. Composto em hexâmetro dactílico, o poema era cantado pelo aedo (o cantor), que também tocava, acompanhando, a cítara ou fórminx, como consta na própria Odisseia, em algumas passagens. São mais de doze mil versos nesse grande épico de Homero em uma tradução primorosa do helenista português Frederico Lourenço, contendo uma introdução riquíssima de Bernard Knox, um dos maiores especialistas americanos em estudos clássicos. O poema é formado por 24 cantos (ou rapsódia), que funcionam como capítulos, divididos em três partes, implicitamente.
A narrativa se dá por meio do regresso de Ulisses (Odisseu) ? herói da guerra de Troia e protagonista que dá nome à obra ? a sua terra natal, a ilha de Ítaca. Como é dito na introdução, é a história do ?herói de mil estratagemas [daí o ajetivo: ?Ulisses de mil ardis?, repetido durante vários vezes no poema] que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quanto lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros?. Odisseu leva mais de dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da guerra de Troia, que também havia durado outros dez anos. A trama se destaca pelo seu caráter moderno na não-linearidade narrativa, apresentando um costume de conservar somente elementos materiais, concreto e diretos, que se encadeiam no poema sem análises nem comentários. É também uma análise psicológica, uma análise do mundo interior, que não era ainda praticada, de forma que as personagens agem ou falam, ou então,falam e agem, nesta ordem, em discurso direto, diante de nós, leitores ? e remontando os primórdios da criação do teatro. Os eventos narrados dependem tanto das escolhas feitas por mulheres, criados e escravos quanto dos guerreiros ? imaginemos então a recepção do caráter ?revolucionário? na época.
Diferentemente da Ilíada, Odisseia não narra feitos bélicos nem se restringe a um local isolado, mas trata de viagens e aventuras (ou desventuras) desse que foi um dos heróis da guerra de Troia. A Odisseia começa com sua trama já inserida no meio de uma história mais ampla, e com os eventos anteriores sendo descritos através de flashbacks ou mesmo de narrativas dentro da própria história. Esse recurso foi imitado por diversos autores de épicos literários posteriores, como, por exemplo, Virgílio, na Eneida, bem como poetas modernos como Alexander Pope em The Rape of the Lock. A ação também é repartida em três tempos principais: na situação de Penélope e Telêmaco em Ítaca, bem como a viagem de Telêmaco; a chegada de Ulisses ao país dos feaces, onde narra as suas aventuras, também informando a nós, leitores; e, por fim, o regresso de Ulisses a Ítaca e a morte (ou o assassínio) dos pretendentes.
Diferente da Ilíada, a Odisseia não possui personagens tão detestáveis quanto. Assim como na Ilíada, Ulisses, aqui dado como figura central do poema, é um sujeito de honra e astúcia como poucos de sua terra conseguem ter; ele se defronta com peripécias sobre-humanas, como, por exemplo, Circe, a deusa feiticeira que transforma os companheiros de Ulisses em porcos, ou o ciclope Polifemo, o mostro marinho, Caríbdis, o monstro marinho, ou mesmo Calipso, a ninfa marítima que recebe Ulisses com hospitalidade e acaba apaixonando-se por ele, desejando tê-lo ao seu lado para sempre, mas que, sob ordens de Zeus deixou ele regressar a sua terra. Apesar de usar meios humanos, ele vence e resiste a todos os obstáculos, embora os deuses contribuíssem para sua integridade física, de todo um homem que utiliza dons dos homens, como a inteligência e a coragem, tornando-se um exemplo para a figura do herói. Telêmaco, seu filho, é outro personagem interessantíssimo, que, ainda criança, vê seu pai partindo para Troia e cresce à medida que toda a ação se desenrola, e, aos 16 anos, parte em busca do pai, cuja ausência longa fere e ameaça o trono de Ítaca. Outra personagem tão importante quanto, é a esbelta Penélope, a fiel esposa de Ulisses, que esperou vinte longos anos, resistindo às investidas dos que pretendiam conquista-la e exigiam dela uma escolha e, para postergá-la, Penélope declarou que elegeria um dos pretendentes quando terminasse de tecer a mortalha de Laertes, pai de Ulisses ? de modo que de dia tecia, de noite desfazia, interminavelmente. Por fim, Atena, deusa da sabedoria, da razão e da guerra (?a deusa dos olhos esverdeados?), assiste Ulisses e Telêmaco em todas as aventuras em que ambos se empenham, e presta auxílio espirituoso, combinado força física e valor aos heróis, e, no decorrer da obra, a deusa assume as mais diversas formas, desde a de homem até a de pássaro.
Odisseia se destaca por ser mais consistente que a Ilíada, tornando-se um substantivo comum, que denomina longa e longínquas jornadas marcadas por perigos e eventos inesperados, e Homero um adjetivo usado para relatar feitos grandiosos. Os seus episódios e personagens ? a fidelidade da esposa Penélope, a virtuosidade do filho Telêmaco, a possessividade da sedutora ninfa Calipso, a ? são partes integrantes e indeléveis que constituem a grandiosidade de Odisseia. É uma obra de grande importância na tradição literária ocidental, em que sua influência perpassa séculos e se espalha por diversas formas de expressão artísticas, desde os primórdios do teatro e da ópera, até as produções cinematográficas mais modernas. A influência homérica é clara em obras como a Eneida, de Virgílio, Os Lusíadas, de Camões, ou Ulysses, de James Joyce, mas não se limita aos clássicos. As aventuras de Ulisses, a superação desesperada dos perigos, as ameaças que lhe surgem na luta pela sobrevivência, são a matriz de grande parte das narrativas modernas. No tratado de Aristóteles, a Poética, ele descreve o enredo perfeitamente: ?Um homem encontra-se no estrangeiro há muitos anos; está sozinho e o deus Posêidon o mantém sob vigilância hostil. Em casa, os pretendentes à mão de sua mulher estão esgotando seus recursos e conspirando para matar seu filho. Então, após enfrentar tempestades e sofrer um naufrágio, ele volta para casa, dá-se a conhecer e ataca os pretendentes: ele sobrevive e os pretendentes são exterminados?.