Gabriel Zupiroli 05/01/2022
Um proto-Dom Casmurro
É realmente impressionante perceber o quão sólida é a escrita de Machado já em seu primeiro romance. É visível que se trata de um livro extremamente articulado, escrito de maneira muito conscienciosa e artesanal, possuindo em si temas que viriam a reverberar em praticamente toda a obra romanesca futura do autor. O paternalismo, a figura do agregado, o interesse sobretudo na psicologia dos personagens e em seus confrontos, tudo isso remete tranquilamente a "Dom Casmurro" e "Memórias póstumas".
Existe, portanto, uma certa unidade em relação à prosa machadiana, no sentido de que o autor cultiva e trabalha com zelo certas perspectivas desde o início de sua escrita, aperfeiçoando-os cada vez mais em função da exímia análise social e psicológica de certa pequeno-burguesia de seu tempo. Isso porque, no fim, é disso que se trata "Ressurreição": ciúme e desconfiança são apresentados aqui sob uma ótica quase satírica daquelas figuras aburguesadas (o que fica bem explícito quando Machado ironiza o romantismo), como sentimentos que são frutos dessa sociedade.
E se esse romance, seu primeiro, é considerado parte de sua fase "romântica", apenas o é porque o retrato que Machado faz necessita de certo sentimentalismo em relação aos acontecimentos. Assim, há o drama (que não deixa de haver nas obras posteriores, diga-se de passagem), há o sentimento, a paixão, a tristeza etc. Esses elementos coroam o interior da narrativa não numa espécie de recursos literários em função de um retrato romântico, mas sim para compôr o cenário sobre o qual Machado procura a todo tempo ironizar. O final do livro atesta isso: ácido, decadente, como se aqueles personagens não fossem mais do que comprovações de tudo isso. Um final deveras infeliz.
Enfim, é muito prazeroso perceber como a escrita machadiana já é muito afiada desde seu primeiro romance. Um deleite através da forma que adentra na psicologia de seus personagens e molda os conflitos humanos. Não interessa tanto "o quê", quanto interessa o "como". E esse é o grande trunfo na forma romanesca do autor. Seu narrador nunca identificado que claramente conhece aqueles personagens é apenas mais um ponto (junto do Félix como proto-Bentinho) que fomenta a maneira de narrar. Machado é genial sobretudo porque é um dos maiores narradores da língua portuguesa. Quiçá o maior.