Carla.Parreira 17/11/2023
O tronco do Ipê
?...O pai Benedito descera a rocha pelo trilho, que seus passos durante trinta anos haviam cavado, e chegou ao tronco decepado de um ipê gigante que outrora se erguera frondoso na margem do Paraíba. Pareceu-me que abraçava e beijava o esqueleto da árvore; aí ficou aquecendo-se ao sol do meio-dia como um velho jacaré. Aproximei-me para pedir-lhe água mais fresca do que a do rio. Mostrou-me um fio cristalino que manava da rocha viva e deu-me excelentes limas e laranjas. Curioso de ver de perto o tronco do ipê que o preto tratava com tanta veneração, descobri junto às raízes, pequenas cruzes toscas, enegrecidas pelo tempo ou pelo fogo. Do lado do nascente, numa funda caverna do tronco, havia uma imagem de Nossa Senhora em barro, um registro de São Benedito, figas de pau, feitiços de várias espécies, ramos secos de arruda e mentruz, ossos humanos, cascavéis e dentes de cobras... Algumas velhas raízes do ipê, ressurgindo à flor da terra, como sucede com as árvores anosas, tinham sido carcomidas pelo caruncho, e dobravam brocas profundas que se entranhavam pelo solo... A palhoça do Pai Benedito era bem antiga e tinha antes dele pertencido a outro. Esse primeiro dono foi um negro cambaio, que ali viveu desde tempos remotos quando a fazenda não passava de uma roça à toa com um velho casebre e alguma plantação de mandioca e milho. O aspecto disforme do negro, e o isolamento em que vivia naquele sítio agreste em meio de ásperos rochedos, incutiram no espírito da gente da vizinhança a crença de que o pai Inácio era feiticeiro. Realmente ele tinha todos os traços que a superstição popular costuma atribuir aos bruxos. Desde então nenhuma catástrofe se deu por aquela redondeza, nenhum transtorno ocorreu, que não fosse lançado à conta da mandinga do negro. Se um roceiro caia do cavalo e quebrava a perna; se alguma dona de casa se queimava no tacho de melado ou no forno a fazer beiju; se dava a peste nas galinhas ou chocava o grão na espiga do milharal, não tinha que ver: era feitiço; e as vozes se uniam em uma só praga e esconjuro contra o bruxo do inferno que encafifava a todos e a tudo... O boqueirão é um palácio encantado que há no fundo da lagoa onde mora a mãe-d?água... Foi um dia uma princesa, filha de uma fada muito poderosa, e do rei da Lua, que era o marido da fada. Sua mãe tinha feito a ela rainha das águas, para governar o mar e todos os rios, todos... Pois a mãe-d?água, como era assim tão bonita, foi adorada por muitos príncipes que todos queriam casar com ela; mas seu coração já pertencia a um rei, lindo como o sol. Dizem mesmo que era filho dele... Houve muitos combates, e o rei, filho do sol, saiu sempre vencedor e alcançou a mão da princesa; e depois as festas que se fizeram, que foi uma coisa de abismar... Houve muita alegria pelo casamento, luminárias, foguetes. Nunca se tinha visto festa assim; e duraram nove dias e nove noites, que ninguém descansou. Ao cabo desses partiu o rei para seu palácio, levando consigo a princesa. E esta dizia ao marido que três meses do ano havia de passar com sua mãe, a fada, e o resto do tempo com ele, seu marido. O rei, que lhe queria muito, ficou triste. Mas era tão bom, que consentiu; porque ele pensava que, se ela não fosse boa filha, não seria boa mulher, nem boa mãe. E esse tempo que ela estava ausente passava com a mãe embaixo d?água, no seu palácio de diamantes. Assim viveram muitos anos, tão felizes, que era um contentamento para toda a gente; e a rainha deu um filho ao rei, o menino mais bonito que já se viu. O pai o adorava; a mãe morria por ele; e todo o mundo quando olhava para o menino ficava mesmo cativo... Chegando o tempo em que a princesa ia visitar sua mãe, quis levar o príncipe; mas o rei lhe pediu tanto e rogou, que ao menos deixasse metade de seu coração e não lhe levasse todo! Ela teve pena e deixou o filhinho, sabe Deus com que dor, e depois de recomendar muito e muito ao rei que tivesse cuidado nele... Tinha-se passado muito tempo, para a gente da terra, que para as fadas não há tempo. O rei quando viu que a rainha não voltava, ficou desconsolado e triste de sua vida; mas havia na corte gente malfazeja que começou a espalhar certas coisas: que a rainha se tinha namorado de um príncipe do mar, muito bem parecido. Como as coisas más sempre se acreditam, o rei desesperado quis vingar-se e casou-se com outra princesa, que estava muito longe da primeira. A madrasta, toda cheia de si, logo mandou o príncipe, filho da princesa das águas, para a cozinha, como se fosse um criado. Um dia que o príncipe vinha, todo sujo de carvão, carregando lenha do mato, encontrou-se com a princesa do mar que chegava; ele não sabia quem era, ainda que ficou abismado com sua beleza; mas ela o reconheceu e abraçou chorando. Então soube o que se tinha passado; e sem querer mais ver o ingrato que a tinha esquecido, sumiu-se com o filho de seu coração no fundo do mar. Por sua ordem as águas começaram a subir, a subir, e afogaram o palácio, o rei, a nova rainha, e todos que tinham dito mal dela. De tempos em tempos ela vem a terra para afogar a gente, e todo menino que entra no rio, ela agarra para servir de criado ao filho. Também de noite, quando alguma criança chora e aflige sua mãe, ela a carrega para o fundo d?água... Como aqui no boqueirão sempre estava sucedendo desgraças, ela dizia que a mãe-d?água morava na lagoa; e que assim no lugar onde tem mais sombra, às vezes se vê ela olhando e rindo com tanta graça, Senhor Deus, que a gente tem vontade mesmo de se atirar no fundo para abraça-la... Dizia-se que em sucedendo uma desgraça no boqueirão, logo aparecia mais uma cruz à sombra do ipê, indicando a sepultura do infeliz tragado pela voragem. Ora, o mistério tornava-se ainda mais profundo com o fato muitas vezes verificado do desaparecimento da vítima arrebatada pelo redemoinho... Havia ali uma gruta, que pai Inácio, antigo dono da choupana, ensinara a Benedito com os outros segredos da sua bruxaria. Era daí que o feiticeiro falava às almas, e metia medo aos curiosos que se animavam a visitar à noite o tronco do ipê... Quando ela e ele voltaram desse enlevo, seus olhos tímidos se encontraram um momento e fugiram; tinham-se queimado no rubor que abrasava o rosto de ambos. O amor, o verdadeiro e puro amor é sempre assim, cheio de recato e pudor. O outro, o fagueiro Cupido da mitologia, que nasceu de Vênus, a deusa da beleza e da sedução, chama-se desejo...?